A C Ó R D Ã O

1ª Turma

GMHCS /db

AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO DE REVISTA. TRANSCENDÊNCIA RECONHECIDA. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. TRABALHO EM CONDIÇÕES ANÁLOGAS ÀS DE ESCRAVO. LABOR EM CONDIÇÕES DEGRADANTES. CARACTERIZAÇÃO. DESNECESSIDADE DE RESTRIÇÃO À LIBERDADE DE LOCOMOÇÃO. 1. Hipótese em que a Corte de origem, a despeito de constatar " o trabalho em condições degradantes, consistentes na precariedade da moradia, higiene e segurança oferecidas aos trabalhadores encontrados pelo grupo especial de fiscalização, destacando-se a falta de instalações sanitárias e dormitórios adequados no alojamento, bem como o não fornecimento de água potável ", afasta a caracterização do trabalho em condições análogas às de escravo, ao entendimento de que, " para a caracterização da figura do trabalho em condições análogas a de escravo, além da violação do bem jurídico ‘dignidade’, é imprescindível ofensa à ‘liberdade’, consubstanciada na restrição da autonomia dos trabalhadores, quer seja para dar início ao contrato laboral, quer seja para findá-lo quando bem entender ". 2. Todavia, o art. 149 do Código Penal, com a redação dada pela Lei nº 10.803/2003, não exige o concurso da restrição à liberdade de locomoção para a caracterização do trabalho em condições análogas às de escravo, mas elenca condutas alternativas que, isoladamente, são suficientes à configuração do tipo penal – dentre as quais " sujeitar alguém a condições degradantes de trabalho ". 3. A matéria já foi examinada pelo Plenário do STF: " PENAL. REDUÇÃO A CONDIÇÃO ANÁLOGA A DE ESCRAVO. ESCRAVIDÃO MODERNA. DESNECESSIDADE DE COAÇÃO DIRETA CONTRA A LIBERDADE DE IR E VIR. DENÚNCIA RECEBIDA. Para a configuração do crime do art. 149 do Código Penal, não é necessário que se prove a coação física da liberdade de ir e vir ou mesmo o cerceamento da liberdade de locomoção, bastando a submissão da vítima 'a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva' ou 'a condições degradantes de trabalho', condutas alternativas previstas no tipo penal. " (Inq. 3.412/AL, Plenário, Redatora Ministra. Rosa Weber, julgado em 29/3/2012) 4. No caso, delineado o trabalho em condições degradantes, a descaracterização do trabalho em condições análogas a de escravo pelo TRT parece violar o art. 149 do Código Penal, nos moldes do art. 896 da CLT, a ensejar o provimento do agravo de instrumento, nos termos do artigo 3º da Resolução Administrativa nº 928/2003.

Agravo de instrumento conhecido e provido.

RECURSO DE REVISTA. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. TRANSCENDÊNCIA RECONHECIDA. TRABALHO EM CONDIÇÕES ANÁLOGAS ÀS DE ESCRAVO. LABOR EM CONDIÇÕES DEGRADANTES. CARACTERIZAÇÃO. DESNECESSIDADE DE CERCEIO À LIBERDADE EM SENTIDO ESTRITO. 1. Hipótese em que a Corte de origem, a despeito de constatar " o trabalho em condições degradantes, consistentes na precariedade da moradia, higiene e segurança oferecidas aos trabalhadores encontrados pelo grupo especial de fiscalização, destacando-se a falta de instalações sanitárias e dormitórios adequados no alojamento, bem como o não fornecimento de água potável ", afasta a caracterização do trabalho em condições análogas às de escravo, ao entendimento de que, " para a caracterização da figura do trabalho em condições análogas a de escravo, além da violação do bem jurídico ‘dignidade’, é imprescindível ofensa à ‘liberdade’, consubstanciada na restrição da autonomia dos trabalhadores, quer seja para dar início ao contrato laboral, quer seja para findá-lo quando bem entender ". 2. Todavia, o art. 149 do Código Penal, com a redação dada pela Lei nº 10.803/2003, não exige o concurso do cerceio à liberdade em sentido estrito para a caracterização do trabalho em condições análogas às de escravo, mas elenca condutas alternativas que, isoladamente, são suficientes à configuração do tipo penal – dentre as quais " sujeitar alguém a condições degradantes de trabalho ". 3. A matéria já foi examinada pelo Plenário do STF: " PENAL. REDUÇÃO A CONDIÇÃO ANÁLOGA A DE ESCRAVO. ESCRAVIDÃO MODERNA. DESNECESSIDADE DE COAÇÃO DIRETA CONTRA A LIBERDADE DE IR E VIR. DENÚNCIA RECEBIDA. Para a configuração do crime do art. 149 do Código Penal, não é necessário que se prove a coação física da liberdade de ir e vir ou mesmo o cerceamento da liberdade de locomoção, bastando a submissão da vítima 'a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva' ou 'a condições degradantes de trabalho', condutas alternativas previstas no tipo penal. " (Inq. 3.412/AL, Plenário, Redatora Ministra. Rosa Weber, julgado em 29/3/2012) Há também precedente desta Corte e reiterados julgados do STJ nesse mesmo sentido. 4. No caso, delineado o trabalho em condições degradantes, a descaracterização do trabalho em condições análogas a de escravo viola o art. 149 do Código Penal.

Recurso de revista conhecido e provido.

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Recurso de Revista n° TST-RR-450-57.2017.5.23.0041 , em que é Recorrente MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO e Recorrido SANTA LAURA VICUNA - FAZENDAS REUNIDAS LTDA , BRUNO PIRES XAVIER , CYRO PIRES XAVIER , GLAUCIA PIRES XAVIER CARDONE , SEBASTIAO DOUGLAS SORGE XAVIER , SUSETE JORGE XAVIER , SILVIA MARGARIDA AMERICO PIRES XAVIER , AGROPECUARIA PRINCESA DO ARIPUANA LTDA. , SSB - ADMINISTRACAO E PARTICIPACOES LTDA. , ROSANA SORGE XAVIER e BX EMPREENDIMENTOS E PARTICIPACOES LTDA.

Contra o acórdão (fls. 5241-62, complementado às fls. 5380-7) mediante o qual o Tribunal Regional da 23ª Região negou provimento ao recurso ordinário do Ministério Público do Trabalho e deu parcial provimento ao apelo dos litisconsortes passivos para " 1) descaracterizar o trabalho em condições análogas às de escravo, afastando a expropriação da propriedade rural (confisco); 2) reduzir a indenização por dano moral coletivo ao importe de R$ 160.000,00 (cento e sessenta mil reais); 3) limitar a responsabilidade pelas irregularidades constatadas à pessoa jurídica "Santa Laura Vicuña - Fazendas Reunidas Ltda."; 4) reduzir o valor das astreintes para R$ 100,00 (cem reais), por obrigação descumprida e empregado prejudicado " (fl. 5262), O Parquet interpôs recurso de revista (fls. 5398-430) apenas em relação aos temas " caracterização de trabalho em condições análogas às de escravo, com a consequente expropriação da propriedade rural " e " valor da indenização por dano moral coletivo ".

Denegado seguimento ao recurso de revista (fls. 5488-95), o MPT interpôs agravo de instrumento (fls. 5498-549).

Com contraminutas (fls. 5571-7, 5584-91, 5592-8, 5612-9, 5620-5, 5647-53, 5684-704, 5723-37) e contrarrazões (fls. 5578-83, 5599-605, 5606-11, 5627-34, 5636-41, 5654-9, 5660-83, 5705-22), vêm os autos a este Tribunal para julgamento.

Feito não submetido ao Ministério Público do Trabalho (art. 95, § 2º, I, do RITST).

É o relatório.

V O T O

A) AGRAVO DE INSTRUMENTO

Preenchidos os pressupostos legais de admissibilidade, referentes à tempestividade (decisão publicada em 16.10.2019 - fl. 5496; recurso apresentado em 06.11.2019 - fl. 26), regularidade de representação (Súmula 436/TST) e isento o preparo (art. 790-A, II, da CLT), prossigo no exame do recurso.

Sinalo que, diversamente do sustentado em contraminuta, o agravo de instrumento veicula impugnação adequada aos fundamentos da decisão agravada, não havendo falar em aplicação da Súmula 422/TST.

O juízo primeiro de admissibilidade denegou seguimento ao recurso de revista do MPT aos seguintes fundamentos:

"PRESSUPOSTOS INTRÍNSECOS

AÇÃO CIVIL PÚBLICA / TRABALHO EM CONDIÇÕES ANÁLOGAS ÀS DE ESCRAVO

RESPONSABILIDADE CIVIL DO EMPREGADOR/EMPREGADO / INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL

Alegações:

- violação aos arts. 184, 186 e 243 da CF.

- violação aos arts. 149 do Código Penal; 9º, III, IV, § 4º e § 5º, da Lei 8.629/1993.

- divergência jurisprudencial.

A Turma Julgadora firmou convicção no sentido de que o caso concreto autoriza falar em "condições degradantes de trabalho", todavia afastou a hipótese de "trabalho em condições análogas às de escravo".

O Ministério Público do Trabalho, ora recorrente, busca o reexame da decisão, afirmando, em expressa referência ao art. 149 do Código Penal, que "(...) o trabalho escravo deve ser considerado gênero do qual o trabalho forçado e trabalho em condições degradantes são espécies. Não é somente o cerceamento da liberdade de ir e vir ou o trabalho forçado que caracteriza o trabalho escravo contemporâneo, mas, sobretudo (e o que é mais comum), o trabalho em condições degradantes, o qual restou vastamente comprovado nos autos. " (Id 29effbc - pág. 20, destaque no original).

Salienta que " (...) a jurisprudência do e. Supremo Tribunal Federal tem caminhado para a compreensão de que não só a ofensa à liberdade física do trabalhador constitui o tipo penal descrito no artigo 149 do Código Penal, mas também as condições degradantes de trabalho, por sonegarem os direitos fundamentais mínimos dos trabalhadores. " (Id 29effbc - pág. 20).

Nessa perspectiva, com o reconhecimento do trabalho análogo ao de escravo, a recorrente busca a " (...) expropriação da propriedade rural para fins de reforma agrária ou programas de habitação popular, sem qualquer indenização aos proprietários e sem prejuízo das demais sanções (administrativas, civis, penais) (...). " (Id 29effbc - pág. 32).

Trago da fundamentação do acórdão:

"Consta dos autos que, em 09/06/2017, a Fazenda Santa Laura foi autuada por grupo especial de fiscalização móvel, composto por Auditor-fiscal do Trabalho, Defensor Público, Procurador do Trabalho, Policial Rodoviário Federal em face da situação dos trabalhadores submetidos a condições degradantes de trabalho, tendo sido constatadas várias irregularidades no local (ID. 1437a88 - ID. 841e1fc).

Naquela oportunidade, após a inspeção do local do estabelecimento e entrevista dos funcionários, a autoridade administrativa responsável pela fiscalização concluiu que os trabalhadores eram submetidos a condições análogas às de escravos, conforme consignado especificamente no auto de infração n. 21.249.783-9 (ID. 4f67d7a), hipótese que dispensa a dupla visita, diga-se de passagem.

Fotos da fiscalização retratam: banheiro sujo; chuveiro improvisado com madeira e ladeado por lona preta; pia sem escoamento, sendo a água despejada no chão; bombas de pulverização de veneno jogadas ao relento; buraco onde os trabalhadores descartavam o lixo produzido; cama improvisada com tijolos e madeira; e piso de chão batido (ID. 4f67d7a - ID. 6c3c5d6).

Esclareço, por oportuno, que compete à União organizar e manter a inspeção do trabalho (art. 21, XXIV, CF), sendo o Ministério do Trabalho e Emprego o órgão competente para tanto. Em razão disso, incumbe os Auditores-fiscais, entre outras atribuições, a verificação dos registros em CTPS, com fim de reduzir os índices de informalidade (art. 11, II, da Lei 10.593/2002).

No que diz respeito à fiscalização, não há falar em cerceamento de defesa, estando correta a postura do Auditor-fiscal no sentido de obstar a presença da advogada (constituída pela sociedade) na oitiva dos trabalhadores, pois tal atitude constrangeria os obreiros a expor suas versões dos fatos.

Ademais, o auto de infração possui presunção relativa de veracidade, cabendo aos infratores o ônus de provar a tese alegada, mister do qual não se desvencilhou, pois a prova documental produzida em juízo não foi suficiente para corroborar sua versão dos fatos, uma vez que não demonstrada a regularidade das relações de trabalho.

A parte demandada nem, ao menos, produziu prova oral na instrução da presente ação civil pública, pois a única pessoa conduzida à audiência foi ouvida pelo juízo na condição de informante, em razão do vínculo profissional dela com a causa, qual seja, patrona constituída pela sociedade.

Outrossim, o sócio administrador da fazenda, Cyro Pires Xavier, em seu depoimento, admitiu que o local onde os trabalhadores foram encontrados não era apropriado para moradia, servindo apenas como ponto de apoio para os prestadores de serviços, destinado à guarda de ferramentas. Veja:

(...)

Nesse contexto, evidente o trabalho em condições degradantes, consistentes na precariedade da moradia, higiene e segurança oferecidas aos trabalhadores encontrados pelo grupo especial de fiscalização, destacando-se a falta de instalações sanitárias e dormitórios adequados no alojamento, bem como o não fornecimento de água potável.

Entretanto, para a caracterização da figura do trabalho em condições análogas a de escravo, além da violação do bem jurídico "dignidade", é imprescindível ofensa à "liberdade", consubstanciada na restrição da autonomia dos trabalhadores, quer seja para dar início ao contrato laboral, quer seja para findá-lo quando bem entender.

Nessa perspectiva, leciona Jairo Lins de Albuquerque, ao tratar sobre o Direito do Trabalho brasileiro:

(...)

É cediço que, no trabalho escravo contemporâneo, além de humilhado e submetido a condições degradantes de trabalho, o obreiro é obstado de rescindir o contrato ou de deixar o local de trabalho a qualquer tempo. Tal interpretação evita que todo trabalho indigno (que é gênero) seja classificado como trabalho escravo (que é espécie).

Nessa perspectiva, colho julgado do c. TST, onde o Ministro Cláudio Brandão tratou da diferença entre trabalho escravo e trabalho degradante, pontuando que 'O trabalho degradante pode ser compreendido como aquele em que não há o respeito mínimo às obrigações decorrentes do contrato, não se confundindo com o trabalho análogo à condição de escravo' (TST-AIRR-101800-82.2008.5.09.0562).

(...)

Aliás, na hipótese de restrição da liberdade, tal circunstância deve ser registrada nos relatórios de fiscalização e nas manifestações do órgão ministerial, para a caracterização do trabalho em condições análogas à de escravo. Nesse sentido, segue parcela da doutrina, a qual me filio.

Veja:

(...)

No entanto, in casu, não há relato de restrição da liberdade dos trabalhadores nos relatórios da fiscalização, mas sim declarações no sentido de que não havia pessoas armadas, nem agressões ou ameaças, gozando os trabalhadores de folgas geralmente aos domingos. Senão vejamos:

(...)

Em síntese, não há registro de cerceio de liberdade dos trabalhadores, quer seja por meio de coação/ameaça, dívidas contraídas, vigilância ostensiva, limitação ao uso de meios de transporte, retenção de documentos e/ou objetos pessoas, quer seja por intermédio de outro artifício, utilizado com fim de reter os obreiros no local de trabalho.

Na verdade, os relatos dos trabalhadores indicam anuência espontânea ao pacto laborativo, com possibilidade de ir e vir do local de trabalho a qualquer momento, não obstante a ausência de transporte público regular, conforme é possível depreender das declarações a seguir transcritas:

(...)

Ante o exposto, dou provimento ao apelo para descaracterizar o trabalho em condições análogas às de escravo, afastando a hipótese de expropriação da propriedade rural (confisco), por corolário lógico.

Todavia, subsiste a responsabilidade civil pelas condições degradantes de trabalho constadas durante a fiscalização do imóvel ." (Id 11c4576, destaque no original).

A partir das premissas fáticas e jurídicas delineadas na decisão impugnada, não vislumbro violação às normas invocadas pela parte recorrente, nos moldes preconizados pela alínea "c" do artigo 896 da CLT.

Afasto também a possibilidade de dar processamento à revista pela vertente da dissensão interpretativa invocada pela parte, tendo em vista que o aresto colacionado às págs. 20/21 não se amolda aos pressupostos estabelecidos na alínea "a" do artigo 896 da CLT.

RESPONSABILIDADE CIVIL DO EMPREGADOR/EMPREGADO / INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL / VALOR ARBITRADO

Alegações:

- violação ao art. 5º, V, X, da CF.

- violação aos arts. 186, 927 e 944 do CC.

O Ministério Público do Trabalho, ora recorrente, postula o reexame do acórdão prolatado pela Turma Julgadora no que tange ao valor fixado a título de compensação por dano moral coletivo.

Assevera, em síntese, que o órgão turmário não sopesou adequadamente as diretrizes jurídicas emanadas pelos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, enfatizando que a "(...) concessão da indenização em valor reduzido - R$ 160.000,00 (cento e sessenta mil reais), muito aquém do valor de R$ 6.000.000,00 (seis milhões de reais) arbitrados pelo r. Juízo de Primeiro Grau - e, considerando o porte econômico das Recorridas, o número de trabalhadores envolvidos, a duração, a gravidade e a repercussão social da conduta ilícita praticada contra a ordem jurídica trabalhista, resulta em total ineficácia quanto ao efeito reparatório, repressivo e pedagógico da medida pleiteada nesta demanda " (Id 29effbc - pág. 22).

Ressalta que " (...) a indenização por danos morais coletivos tem como função primordial oferecer à coletividade de trabalhadores uma compensação pelo dano já sofrido, atenuando, em parte, as consequências da lesão e, ao mesmo tempo, coibindo, por meio dessa indenização, novas condutas ilícitas, ao tempo em que aplica ao causador da lesão uma sanção pelo ilícito praticado. " (Id 29effbc - pág. 26).

Pontua que " (...) as Recorridas não realizaram uma adequação voluntária das suas condutas, já que o trabalho em condições análogas ao de escravo foi flagrado em diligência promovida pelo Grupo Especial de Fiscalização Móvel na Fazenda Santa Laura Vicuña, tendo sido constatada a presença de 23 (vinte e três) trabalhadores sem registro de Carteira de Trabalho e Previdência Social, os quais residiam em alojamentos em péssimas condições, sem respeito às normas de segurança e saúde e em condições degradantes " (Id 29effbc - pág. 22).

Aduz que a " (...) conduta ilegal das Recorridas ocasionou grave lesão ao patrimônio valorativo da comunidade atingida, razão pela qual o valor da condenação pelos gravames causados deve ser fixado de modo a efetivamente reparar os danos morais difusos e coletivos provocados, além de servir de desestímulo à reiteração da conduta ilícita. " (Id 29effbc - pág. 22).

Nessa perspectiva, assere que " (...) a v. decisão recorrida, portanto, ao não fixar indenização pelo dano moral coletivo reconhecido como causado pelas Recorridas nos patamares requeridos pelo órgão ministerial, acabou por violar a literalidade do inciso V e X do artigo 5º da Constituição Federal, normas que estabelecem expressamente que as indenizações por danos morais deverão ser proporcionais à lesão causada. " (Id 29effbc - pág. 27).

Extraio da ementa do acórdão impugnado:

" AÇÃO CIVIL PÚBLICA. INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL COLETIVO. QUANTUM INDENIZATÓRIO. O dano moral coletivo tem o seu fundamento previsto no art. 5º, X, da CF, uma vez que o inciso, ao mencionar aqueles que podem ser sujeitos de dano moral, dispõe "pessoas" no plural, denotando que o dano moral pode transcender o interesse individual e atingir a esfera coletiva. Ademais, a legislação infraconstitucional prevê a possibilidade de reparação do dano moral coletivo no art. 6º, VI, do CDC, ao dispor que "a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais individuais, coletivos e difusos". Outrossim, o arbitramento do quantum indenizatório é parte intrínseca da essência da quantificação do dano moral, mas alguns critérios hão de ser observados como, por exemplo, a posição social do ofendido, a situação econômica do ofensor, a culpa do ofensor na ocorrência do evento, iniciativas do ofensor em minimizar os efeitos do dano, dentre outros, a fim de que não fique inteiramente ao alvedrio do julgador estabelecer valores na indenização. No caso dos autos, restou descaracterizado o trabalho em condições análogas às de escravo, subsistindo a figura do trabalho em condições degradantes, consistentes na precariedade da moradia, higiene e segurança oferecidas a 23 (vinte e três) trabalhadores. Nesse contexto, considerando que foram tomadas providências para regularizar a situação, mostra-se excessivo o valor do dano moral coletivo arbitrado na origem, qual seja, de R$ 6.000.000,00 (seis milhões de reais), devendo ser reduzido para R$ 160.000,00 (cento e sessenta mil reais), o qual reputa-se razoável e adequado à hipótese dos autos. " (Id 11c4576, destaques no original).

Trago da fundamentação:

"O arbitramento do quantum debeatur é parte intrínseca da essência da quantificação do dano moral, mas alguns critérios hão de ser observados como, por exemplo, a posição social do ofendido, a situação econômica do ofensor, a culpa do ofensor na ocorrência do evento, iniciativas do ofensor em minimizar os efeitos do dano, dentre outros, a fim de que não fique inteiramente ao alvedrio do julgador estabelecer valores na indenização.

Dessa feita, a quantificação da indenização que possui o intuito de compensar os infortúnios causados pelo dano moral, deve ser delimitada por arbitramento, na forma do art. 5º, V, da CR/88 c/c 944 do CC, uma vez que já pacificado na doutrina e na jurisprudência, ante a falta de um parâmetro mínimo e máximo estipulado em lei.

Entretanto, esse arbitramento guarda estreita relação com o bom senso do julgador, devendo este buscar a solução que melhor traduza o sentimento de justiça no espírito da ofendida e da própria sociedade. Nesse aspecto, impende a observância de alguns parâmetros a serem utilizados para a fixação do valor devido à indenização/reparação de dano moral. Impõe-se buscar uma solução humanista que não destoe da lógica jurídica.

A indenização a ser fixada, além da compensação pelo dano moral ensejado deve também traduzir o caráter pedagógico na sua aplicabilidade, no sentido de inibir o ofensor na continuação de sua conduta, ou mesmo incentivá-lo a proceder de acordo com o direito, evitando que tal procedimento possa ocorrer com outros trabalhadores.

No caso concreto, a equipe de fiscalização encontrou um número elevado de pessoas em situação irregular, no total de 23 (vinte três) trabalhadores, em condições mínimas de saúde, higiene e segurança no local trabalho, incluindo um menor, em meado do ano de 2017, o que deve ser considerado por ocasião da quantificação do dano moral coletivo, de maneira que a indenização seja adequada aos fins a que se destina.

Entretanto, foram tomadas providências imediatas para adequar o local de trabalho às normas de saúde, higiene e segurança, promovendo condições dignas de trabalho, ressaltando a assinatura de Termo de Compromisso de Ajustamento de Conduta (TAC) de ID. 6948403), sem notícia de descumprimento, bem como a proposta de acordo "no valor de R$80.000,00, a título de dano moral coletivo" (ID. d554172).

Outrossim, chamo atenção para os TRCTs e comprovantes de transferência bancária aos empregados, acostados sob ID. 1d82485 a ID. 535af52; bem como fotos acerca do implemento de melhorias nos alojamentos e banheiros, construção de fossas sépticas e galpões para estocagem de produtos agrícolas, distinguindo-se, ainda, a figura de ônibus ao lado do maquinário (ID. b92778e a ID. f23e040).

Considerando que casos semelhantes já foram analisadas por este egrégio Tribunal Regional do Trabalho, valho-me da consulta à jurisprudência da Corte, com fim de apurar o quantum indenizatório mais adequado e razoável a título de compensação pelo dano moral coletivo provocado.

Lembro que, nos autos 0001532-41.2011.5.23.0007, de relatoria da Desª Beatriz Theodoro, com acórdão publicado em 2013, o valor da indenização por dano moral coletivo foi reduzido de R$ 1.200.000,00 (um milhão e duzentos mil reais), para R$ 60.000,00 (sessenta mil reais), tratando-se de hipótese de ausência de condições mínimas de saúde e segurança do trabalho a 14 (quatorze) trabalhadores. Veja:

(...)

Já no processo 0000393-69.2017.5.23.0031, de relatoria do Des. Bruno Weiler, com acórdão publicado em 2019, reduziu-se a compensação por dano moral coletivo de R$ 100.000,00 (cem mil reais) para R$ 75.000,00 (setenta e cinco mil reais), diante da conduta patronal consubstanciada na violação aos direitos sociais e fundamentais de seu único empregado. Colho da ementa:

(...)

Assim, considerando o número de trabalhadores em situação irregular, o grau de culpabilidade, a extensão local do dano proporcionado à comunidade rural de Colíder-MT, a possibilidade econômica do ofensor, o proveito obtido, bem como a iniciativa de minimizar os efeitos do dano, além do caráter pedagógico da pena, fixo o valor de R$ 160.000,00 (cento e sessenta mil reais) para compensar o dano moral coletivo.

Portanto, nego provimento ao apelo ministerial e dou parcial provimento ao apelo patronal, para reduzir a indenização por dano moral coletivo de R$ 6.000.000,00 (seis milhões) para o importe de R$ 160.000,00 (cento e sessenta mil reais), revertidos às instituições filantrópicas de escolha do Comitê Multi-Institucional de Colíder para que atenda às necessidades da comunidade lesada." (Id 11c4576, destaques no original)

A partir das premissas fáticas e jurídicas delineadas na decisão impugnada, verifica-se que o valor da compensação por dano moral foi arbitrado observando-se as especificidades do caso concreto, razão pela qual, não vislumbro violação aos arts. 5º, V e X , da CF; 944 do Código Civil, nos moldes preconizados pela alínea "c" do art. 896 da CLT.

As demais normas infraconstitucionais, invocadas como violadas pela parte recorrente, não guardam relação de pertinência direta com a matéria impugnada.

CONCLUSÃO

DENEGO seguimento ao recurso de revista." (destaquei)

Na minuta, o agravante insiste no processamento do recurso de revista.

Alega que " a decisão, ao fixar a tese jurídica, ora combatida, de que restam comprovadas as condições degradantes de trabalho, mas não condições análogas de escravo, incorreu em violação dos " arts. 5º, V, da Constituição Federal, 186, 927 e 944 do Código Civil, 1º, IV, e 3º da Lei nº 7.347/85 e 149 do Código Penal. Argumenta que, a teor do art. 149 do Código Penal, " o trabalho escravo deve ser considerado gênero do qual o trabalho forçado e trabalho em condições degradantes são espécies. Não é somente o cerceamento da liberdade de ir e vir ou o trabalho forçado que caracteriza o trabalho escravo contemporâneo, mas, sobretudo (e o que é mais comum), o trabalho em condições degradantes ". Refere que, na hipótese, o acórdão regional " reconhece formalmente a ocorrência de trabalho em condições degradantes, cujo artigo 149 do Código Penal equipara ao trabalho em condições análogas à de escravo ". Pondera que " a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem caminhado para a compreensão de que não só a ofensa à liberdade física do trabalhador constitui o tipo penal descrito no artigo 149 do Código Penal, mas também as condições degradantes de trabalho, por sonegarem os direitos fundamentais mínimos dos trabalhadores ".

Acrescenta que, " uma vez caracterizada a existência de trabalho escravo, faz-se necessário restabelecer o procedimento expropriatório determinado pela r. sentença ". Invoca aos arts. 5º, XXII, 184, 186 e 243 da Constituição Federal, 9º da Lei nº 8.629/93 e 1º, 6º, 15 e 23 da Lei nº 8.257/91.

Renova, ainda, a investida quanto ao valor fixado a título de indenização por danos morais coletivos. Sustenta que " o r. acórdão não logrou demonstrar a proporcionalidade e a razoabilidade da redução da condenação face ao quadro fático-probatório retratado nos autos, violando, assim, o disposto nos incisos V e X, do artigo 5º da Constituição Federal da República de 1988, bem como aos artigos 186, 927 e 944 do Código Civil ". Alega que " a concessão da indenização em valor reduzido - R$ 160.000,00 (cento e sessenta mil reais), muito aquém do valor de R$ 6.000.000,00 (seis milhões de reais) arbitrados pelo r. Juízo de Primeiro Grau - e, considerando o porte econômico das Recorridas, o número de trabalhadores envolvidos, a duração, a gravidade e a repercussão social da conduta ilícita praticada contra a ordem jurídica trabalhista, resulta em total ineficácia quanto ao efeito reparatório, repressivo e pedagógico da medida pleiteada nesta demanda ". Assevera que " as Recorridas dispõem de extenso grupo econômico ", de modo que " o valor fixado no r. acórdão Regional, data vênia, não atende ao porte do grupo familiar envolvido, a recalcitrância nas infrações cometidas, a reiteração na submissão de trabalhadores a condições análogas à de escravo e ao caráter pedagógico da medida ", sendo " necessária a reforma do r. acórdão " " para majorar o valor da indenização por dano moral coletivo para R$ 100.000.000,00 (cem milhões de reais), conforme pleiteado na exordial ".

Publicado o acórdão regional na vigência da Lei 13.467/2017, incide o disposto no art. 896-A da CLT, que exige, como pressuposto ao exame do recurso de revista, a transcendência econômica, política, social ou jurídica (§1º, incisos I, II, III e IV).

No caso, é de ser reconhecida a transcendência social, ínsita às ações civis públicas movidas pelo Ministério Público do Trabalho; a transcendência econômica, diante do elevado valor atribuído à causa (R$ 100.000.000,00; fl. 96); bem como a transcendência jurídica, ante a possibilidade de reconhecimento de violação de dispositivo legal.

Destaque-se, ainda, que o STF reconheceu a repercussão geral da matéria relativa à " Constitucionalidade da diferenciação das condições de trabalho necessárias à tipificação do trabalho como degradante em razão da realidade local em que realizado e o standard probatório para condenação pelo crime de redução a condição análoga à de escravo " (Tema 1158):

RECURSO EXTRAORDINÁRIO. DIREITO PENAL. REDUÇÃO A CONDIÇÃO ANÁLOGA À DE ESCRAVO. ARTIGO 149 DO CÓDIGO PENAL. TIPICIDADE. STANDARD PROBATÓRIO. CONDIÇÕES DE TRABALHO DEGRADANTE. REALIDADES DO TRABALHO RURAL E DO TRABALHO URBANO. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. REDUÇÃO DAS DESIGUALDADES. VALORES SOCIAIS DO TRABALHO. RELEVÂNCIA DA QUESTÃO CONSTITUCIONAL. MANIFESTAÇÃO PELA EXISTÊNCIA DE REPERCUSSÃO GERAL. (RE 1323708 RG, Relator(a): MINISTRO PRESIDENTE, Tribunal Pleno, julgado em 06/08/2021, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-164 DIVULG 17-08-2021 PUBLIC 18-08-2021)

TRABALHO EM CONDIÇÕES ANÁLOGAS ÀS DE ESCRAVO. CARACTERIZAÇÃO

Os trechos do acórdão regional transcritos na decisão agravada revelam que a Corte de origem, a despeito de considerar ser " evidente o trabalho em condições degradantes, consistentes na precariedade da moradia, higiene e segurança oferecidas aos trabalhadores encontrados pelo grupo especial de fiscalização, destacando-se a falta de instalações sanitárias e dormitórios adequados no alojamento, bem como o não fornecimento de água potável ", afasta a caracterização do trabalho em condições análogas às de escravo, ao entendimento de que, " para a caracterização da figura do trabalho em condições análogas a de escravo, além da violação do bem jurídico ‘dignidade’, é imprescindível ofensa à ‘liberdade’, consubstanciada na restrição da autonomia dos trabalhadores, quer seja para dar início ao contrato laboral, quer seja para findá-lo quando bem entender ".

Todavia, a nova redação dada ao art. 149 do Código Penal pela Lei nº 10.803/2003 ampliou as formas de caracterização da redução à condição análoga à de escravo. Eis o respectivo teor:

"Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto:

Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência.

§ 1 o Nas mesmas penas incorre quem:

I – cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho;

II – mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho.

§ 2 o A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido:

I – contra criança ou adolescente;

II – por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem."

Fica claro que o caput do dispositivo prevê condutas alternativas que, isoladamente , são suficientes à caracterização do tipo penal; quais sejam: submeter alguém a trabalhos forçados; ou submeter alguém a jornada exaustiva; ou sujeitar alguém a condições degradantes de trabalho ; ou restringir, por qualquer meio, a locomoção de alguém em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto.

Constata-se, portanto, que a atual redação do referido artigo, adequada à repreensão das formas contemporâneas de trabalho escravo, não exige o concurso da restrição à liberdade de locomoção para a caracterização do trabalho em condições análogas às de escravo.

Com efeito, " o tipo penal presta-se a resguardar não somente a liberdade de locomoção do indivíduo, como outrora arguiu-se, mas, também, e principalmente, a dignidade, principal atributo do ser humano, de modo que não se faz necessário o cerceamento à liberdade para que reste configurado o crime em comento " (MARANHÃO, Ney Stany Morais; MESQUITA, Valena Jacob Chaves; GARCIA, Anna Marcella Mendes. A aplicação do princípio jusambiental do poluidor-pagador às situações de trabalho análogo ao de escravo . Revista Direito das Relações Sociais e Trabalhistas, Brasília, DF, v.5, n.1, jan./abr.,2019, p. 208. Disponível em:  . Acesso em: 18 jan. 2022.).

Estão " previstos 04 (quatro) modos de execução típicos, para caracterizar o crime previsto no caput do artigo 149: 1) sujeição ao trabalho forçado; 2) submissão à jornada exaustiva; 3) condições degradantes de trabalho, e 4) restrição à locomoção, por qualquer meio, em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto. (...) Observa-se que se trata de crime de ação múltipla e conteúdo variado. Bastando que uma ação ou todas sejam praticadas para que se defina a conduta criminosa " (WÜLFING, Juliana. Jurisprudência Comentada. STJ. Delito de submissão à condição análoga à de escravo que se configura independente de restrição à liberdade dos trabalhadores . REVISTA DOS TRIBUNAIS. São Paulo: RT, v. 109, n. 1021, nov. 2020; p. 379).

Desse modo, " o trabalho em condições análogas à de escravo é reconhecido, hoje em dia, a partir do momento em que há o desrespeito ao atributo maior do ser humano, que é a sua dignidade, e que ocorre, do ponto de vista do trabalho humano, quando é negado ao trabalhador um conjunto mínimo de direitos que a Organização Internacional do Trabalho convencionou chamar de trabalho decente ". Confirma-se, então, que " o trabalho prestado na condição análoga à de escravo é gênero, do qual são espécies o trabalho forçado e o trabalho degradante. Em ambas as modalidades, o princípio da dignidade da pessoa humana é afrontado " (PEREIRA, Paulo de Tarso. O desafio de coibir o trabalho em condições análogas ao de escravo no Brasil . Revista de Direito do Trabalho. São Paulo: RT, v. 204, ano 45, ago. 2009; p. 196).

A matéria já foi examinada pelo Plenário do STF, que sinalizou a suficiência da sujeição a condições degradantes de trabalho para a configuração do crime previsto no art. 149 do Código Penal:

"PENAL. REDUÇÃO A CONDIÇÃO ANÁLOGA A DE ESCRAVO. ESCRAVIDÃO MODERNA. DESNECESSIDADE DE COAÇÃO DIRETA CONTRA A LIBERDADE DE IR E VIR. DENÚNCIA RECEBIDA. Para configuração do crime do art. 149 do Código Penal, não é necessário que se prove a coação física da liberdade de ir e vir ou mesmo o cerceamento da liberdade de locomoção, bastando a submissão da vítima "a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva" ou "a condições degradantes de trabalho", condutas alternativas previstas no tipo penal. A "escravidão moderna" é mais sutil do que a do século XIX e o cerceamento da liberdade pode decorrer de diversos constrangimentos econômicos e não necessariamente físicos. Priva-se alguém de sua liberdade e de sua dignidade tratando-o como coisa e não como pessoa humana, o que pode ser feito não só mediante coação, mas também pela violação intensa e persistente de seus direitos básicos, inclusive do direito ao trabalho digno. A violação do direito ao trabalho digno impacta a capacidade da vítima de realizar escolhas segundo a sua livre determinação. Isso também significa "reduzir alguém a condição análoga à de escravo". Não é qualquer violação dos direitos trabalhistas que configura trabalho escravo. Se a violação aos direitos do trabalho é intensa e persistente, se atinge níveis gritantes e se os trabalhadores são submetidos a trabalhos forçados, jornadas exaustivas ou a condições degradantes de trabalho, é possível, em tese, o enquadramento no crime do art. 149 do Código Penal, pois os trabalhadores estão recebendo o tratamento análogo ao de escravos, sendo privados de sua liberdade e de sua dignidade. Denúncia recebida pela presença dos requisitos legais." (Inq 3412, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão: ROSA WEBER, Tribunal Pleno, julgado em 29/03/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-222 DIVULG 09-11-2012 PUBLIC 12-11-2012 RTJ VOL-00224-01 PP-00284)

Na mesma linha, colho o seguinte julgado deste Tribunal:

"(...) RECURSO DE REVISTA INTERPOSTO PELO AUTOR. MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO. TRABALHO EM CONDIÇÕES ANÁLOGAS À DE ESCRAVO. CONFIGURAÇÃO. No caso em análise, o eg. Tribunal Regional considerou que " embora reconhecida a realização de trabalho em condições degradantes, não restou demonstrado nos autos a redução dos representados à condição análoga à de escravo ", concluindo que " em nenhum momento, houve alusão a qualquer impedimento à ampla liberdade de locomoção dos trabalhadores " e que " a liberdade de ir e vir é incompatível com a condição de trabalhador escravo ". Com a redação alterada do art. 149 do Código Penal pela Lei nº 10.803/2003, o tipo penal passou a trazer explicitamente o conceito do que vem a ser o crime de redução a condição análoga à de escravo, trazendo as hipóteses configuradoras, dentre as quais "sujeitar a condições degradantes de trabalho", exatamente a situação descrita pelo eg. Tribunal Regional. Sob esse enfoque, a caracterização do trabalho escravo não mais está atrelada condicionalmente à restrição da liberdade de locomoção do empregado - conceito revisto em face da chamada "escravidão moderna". É preciso aperfeiçoar a interpretação do fato concreto, de modo a adequá-lo ao conceito contemporâneo de trabalho escravo contemporâneo. Nesse sentido têm caminhado a jurisprudência e a doutrina. Uma vez configuradas as condições degradantes a que eram submetidos os empregados, evidenciado o trabalho em condição análoga à de escravo, o que se declara, nos exatos termos do art. 149 do Código Penal. Recurso de revista conhecido e provido. (...)" (ARR-53100-49.2011.5.16.0021, 6ª Turma, Relator Ministro Aloysio Correa da Veiga, DEJT 12/05/2017).

O Superior Tribunal de Justiça, na mesma linha do STF, " tem entendido que o crime de redução à condição análoga à de escravo prevê expressamente condutas alternativas e aptas, igualmente, a ofender o bem juridicamente tutelado, não sendo necessária a violação direta à liberdade de locomoção " ( BRITO FILHO, José Cláudio Monteiro de; CASTILLO JUCÁ, Ana Carolina Del; DUARTE, Beatriz Bergamim. Posicionamento do Superior Tribunal de Justiça (STJ) em relação a questões envolvendo o trabalho em condições análogas às de escravo. In: FIGUEIRA, Ricardo Rezende; PRADO, Adonia Antunes; GALVÃO, Edna Maria (org.). Escravidão: moinho de gentes no século XXI. Rio de Janeiro : Mauad X, 2019. Seção VI: Trabalho escravo e revisão judicial. Cap. 11. p. 268).

Colho julgados reiterados daquela Corte:

"PENAL. PROCESSO PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. REDUÇÃO A CONDIÇÃO ANÁLOGA À DE ESCRAVO. ART. 149 DO CÓDIGO PENAL ? CP. CONDENAÇÃO RESTABELECIDA. ÓBICE DA SÚMULA N. 7 DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA ? STJ AFASTADO. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO.

1. Afasta-se a incidência da Súmula n. 7 do STJ ao caso concreto, pois a análise das questões formuladas no recurso especial independe de revolvimento do contexto fático probatório dos autos, mas tão somente da revaloração do panorama posto no próprio acórdão de segundo grau de jurisdição.

2. Sendo certo que o tipo previsto no art. 149 do CP é plurissubsistente, caracteriza-se o crime mediante a prática quaisquer das ações ali descritas. Precedentes.

3. Na hipótese, a sentença condenatória - reproduzida pelo acórdão recorrido - destacou a ausência de água potável, instalações sanitárias e alojamentos adequados, equipamentos de proteção pessoal, material de primeiros socorros, e endividamento dos trabalhadores mediante o adiantamento de valores para a aquisição de gêneros alimentícios, circunstâncias que caracterizam as condições degradantes de trabalho que correspondem ao tipo penal. 4. Agravo regimental desprovido." (AgRg no AgRg no REsp 1863229/PA, Rel. Ministro JOEL ILAN PACIORNIK, QUINTA TURMA, julgado em 14/09/2021, DJe 20/09/2021; destaquei)

"RECURSO ESPECIAL. REDUÇÃO À CONDIÇÃO ANÁLOGA À DE ESCRAVO. CONDENAÇÃO EM 1º GRAU. AFASTAMENTO PELO TRIBUNAL DE ORIGEM PORQUE NÃO CONFIGURADA RESTRIÇÃO À LIBERDADE DOS TRABALHADORES OU RETENÇÃO POR VIGILÂNCIA OU MEDIANTE APOSSAMENTO DE DOCUMENTOS PESSOAIS. CRIME DE AÇÃO MÚLTIPLA E CONTEÚDO VARIADO. SUBMISSÃO A CONDIÇÕES DE TRABALHO DEGRADANTES. DELITO CONFIGURADO. CONDENAÇÃO RESTABELECIDA. RECURSO PROVIDO. 1. Nos termos da jurisprudência desta Corte, o delito de submissão à condição análoga à de escravo se configura independentemente de restrição à liberdade dos trabalhadores ou retenção no local de trabalho por vigilância ou apossamento de seus documentos, como crime de ação múltipla e conteúdo variado, bastando, a teor do art. 149 do CP, a demonstração de submissão a trabalhos forçados, a jornadas exaustivas ou a condições degradantes. Precedentes. 2. Devidamente fundamentada a condenação pela prática do referido delito em razão das condições degradantes de trabalho e de habitação a que as vítimas eram submetidas, consubstanciadas no não fornecimento de água potável, no não oferecimento, aos trabalhadores, de serviços de privada por meio de fossas adequadas ou outro processo similar, de habitação adequada, sendo-lhes fornecido alojamento em barracos cobertos de palha e lona, sustentados por frágeis caibros de madeira branca, no meio da mata, sem qualquer proteção lateral, com exposição a riscos, não há falar em absolvição. 3. Recurso especial provido para restabelecer a sentença condenatória, determinando que o Tribunal de origem prossiga no exame do recurso de apelação defensivo." (REsp 1843150/PA, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 26/05/2020, DJe 02/06/2020; destaquei)

"AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. CRIME DO ART. 149 DO CÓDIGO PENAL. RESTRIÇÃO À LIBERDADE DO TRABALHADOR NÃO É CONDIÇÃO ÚNICA DE SUBSUNÇÃO TÍPICA. TRATAMENTO SUBUMANO AO TRABALHADOR. CONDIÇÕES DEGRADANTES DE TRABALHO. FATO TÍPICO . SÚMULA N. 568/STJ. AGRAVO NÃO PROVIDO.

1. O artigo 149 do Código Penal dispõe que configura crime a conduta de "reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto".

2. O crime de redução a condição análoga à de escravo pode ocorrer independentemente da restrição à liberdade de locomoção do trabalhador, uma vez que esta é apenas uma das formas de cometimento do delito, mas não é a única. O referido tipo penal prevê outras condutas que podem ofender o bem juridicamente tutelado, isto é, a liberdade de o indivíduo ir, vir e se autodeterminar, dentre elas submeter o sujeito passivo do delito a condições degradantes de trabalho. Precedentes do STJ e STF.

3. Incidência da Súmula 568/STJ: "O relator, monocraticamente e no Superior Tribunal de Justiça, poderá dar ou negar provimento ao recurso quando houver entendimento dominante acerca do tema.".

4. Agravo regimental não provido."

(AgRg no AREsp 1467766/PR, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 27/08/2019, DJe 10/09/2019; destaquei)

"AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. REITERAÇÃO DE RECURSO JÁ ANALISADO POR ESTA CORTE. PEDIDO DE EXTENSÃO DE ORDEM CONCEDIDA A CORRÉU PELO COLEGIADO DE ORIGEM. AUSÊNCIA DE SIMILITUDE FÁTICA-PROCESSUAL ENTRE OS DENUNCIADOS. REQUISITOS DO ART. 580 DO CPP NÃO ATENDIDOS. AGRAVO DESPROVIDO.

1. Nos termos do reconhecido na decisão ora agravada, no recurso ordinário ema análise, a toda evidência, são reiteradas as razões vinculadas no RHC n. 64.073/PI, já desprovido por esta Quinta Turma, isso porque há identidade de partes e da causa de pedir, o que constitui óbice ao seu conhecimento. Por certo, em ambos os feitos é deduzido pleito de trancamento da mesma ação penal (AP 32966-88.2014.4.01.4000), ora em curso na 3ª Vara da Seção Judiciária do Piauí, na qual é apurada a prática de crime de redução à condição análoga de escravo (CP, art. 149). A concessão da ordem em writ impetrado em favor de corréu na origem não justifica o reexame das questões fáticas e jurídicas já submetidas a exame por esta Corte, pois não elidem a conclusão deste Colegiado, no sentido na ausência de manifesta arbitrariedade a justificar o trancamento do processo-crime pela suposta carência de justa causa para persecução penal e a alegada inépcia da peça acusatória quanto ao réu.

2. O art. 580 do Código de Processo Penal prevê a extensão dos efeitos de decisões a corréus cuja situação fático-processual seja idêntica àquele em favor de quem foi ela proferida. No caso, porém, o Tribunal Regional Federal, ao indeferir pedido de extensão dos efeitos da ordem concedida a corréu no bojo do HC n. 0017059-74.2016.4.01.0000/PI, reconheceu que o paciente, como sócio-diretor RMS ENGENHARIA, assinou contratos de trabalho, rescisões contratuais e pedidos de demissão dos trabalhadores, figurando em tais documentos como "empregador", enquanto o acusado Tufi atuava como Diretor Presidente da Companhia Ferroviária do Nordeste - CFN, não sendo o responsável direto pela fiscalização das obras. Nesse passo, não se infere qualquer ilegalidade na decisão do Colegiado de origem a ser sanada por esta Corte.

3. No art. 149 do Código Penal são previstas condutas alternativas que, isoladamente, subsumem-se ao crime de redução a condição análoga à de escravo, tratando-se, portanto, de crime plurissubsistente. Assim, tendo sido atribuído ao réu o verbo "sujeitar alguém a condições degradantes de trabalho", o simples fato de não ter sido descrito cerceamento do direito de locomoção dos trabalhares explorados não denota a ausência de tipicidade das condutas descritas na peça acusatória.

4. Agravo regimental desprovido."

(AgRg no RHC 85.875/PI, Rel. Ministro RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, julgado em 24/04/2018, DJe 02/05/2018; destaquei)

"CONFLITO DE COMPETÊNCIA. PROCESSUAL PENAL. CRIME DE REDUÇÃO A CONDIÇÃO ANÁLOGA À DE ESCRAVO. ART. 149 DO CÓDIGO PENAL. RESTRIÇÃO À LIBERDADE DO TRABALHADOR NÃO É CONDIÇÃO ÚNICA DE SUBSUNÇÃO TÍPICA. TRATAMENTO SUBUMANO AO TRABALHADOR. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL.

1. Para configurar o delito do art. 149 do Código Penal não é imprescindível a restrição à liberdade de locomoção dos trabalhadores, a tanto também se admitindo a sujeição a condições degradantes, subumanas.

2. Tendo a denúncia imputado a submissão dos empregados a condições degradantes de trabalho (falta de garantias mínimas de saúde, segurança, higiene e alimentação), tem-se acusação por crime de redução a condição análoga à de escravo, de competência da jurisdição federal."

(CC 127.937/GO, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 28/05/2014, DJe 06/06/2014)

Na espécie, a Corte de origem reconhece ser " evidente o trabalho em condições degradantes, consistentes na precariedade da moradia, higiene e segurança oferecidas aos trabalhadores encontrados pelo grupo especial de fiscalização, destacando-se a falta de instalações sanitárias e dormitórios adequados no alojamento, bem como o não fornecimento de água potável " (fl. 5248). Consigna que " a equipe de fiscalização encontrou um número elevado de pessoas em situação irregular, no total de 23 (vinte três) trabalhadores, em condições mínimas de saúde, higiene e segurança no local trabalho, incluindo um menor " (fl. 5252). Registra que " fotos da fiscalização retratam: banheiro sujo; chuveiro improvisado com madeira e ladeado por lona preta; pia sem escoamento, sendo a água despejada no chão; bombas de pulverização de veneno jogadas ao relento; buraco onde os trabalhadores descartavam o lixo produzido; cama improvisada com tijolos e madeira; e piso de chão batido " (fl. 5247).

Nessa senda, devidamente delineado o trabalho em condições degradantes, a conclusão regional pela descaracterização da redução a condição análoga à de escravo parece violar o art. 149 do Código Penal.

Assim, ante possível violação do artigo 149 do Código Penal, afasto o óbice oposto pelo despacho denegatório do recurso de revista e dou provimento ao agravo de instrumento para dar processamento ao recurso de revista.

B) RECURSO DE REVISTA

I – CONHECIMENTO

1. PRESSUPOSTOS EXTRÍNSECOS

Tempestivo o recurso (intimação pessoal do MPT em 29.07.2019; recurso apresentado em 20.08.2019 - fl. 5489), regular a representação (Súmula 436/TST) e isento o preparo (art. 790-A, II, da CLT).

2. PRESSUPOSTOS INTRÍNSECOS

TRABALHO EM CONDIÇÕES ANÁLOGAS ÀS DE ESCRAVO. LABOR EM CONDIÇÕES DEGRADANTES. CARACTERIZAÇÃO

No ponto, o acórdão regional tem o seguinte teor:

"TRABALHO EM CONDIÇÕES ANÁLOGAS À DE ESCRAVO. CARACTERIZAÇÃO (Recursos dos Réus)

 O Juízo de origem, considerando a existência de labor em condições análogas a de escravo, arbitrou indenização por dano moral coletivo, no valor de R$ 6.000.000,00 (seis milhões de reais), determinando, outrossim, o cumprimento de 58 (cinquenta e oito) obrigações de fazer e não fazer, elencadas no item "2.2.4" da sentença, com vista à melhoria das condições de trabalho.

Inconformados, os Demandados buscam extirpar da sentença a responsabilidade civil pelas irregularidades constatadas na fiscalização do imóvel rural, negando trabalhos forçados, jornadas exaustivas, cerceio de liberdade, vigilância ostensiva e retenção de documentos ou objetos pessoais.

Alegam, ainda, que a situação fática poderia ser enquadrada como hipótese de terceirização, tendo em vista a contratação de empresa interposta para o exercício de atividades especializadas e de curta duração, sem formação de vínculo direto entre os trabalhadores e Demandados.

Nessa perspectiva, atribuem ao Ministério Público do Trabalho o ônus da prova do trabalho em condições análogas às de escravo, mister do qual não teria se desincumbido, na medida em que o procedimento fiscalização promovido por grupo especial seria inquisitório e de valor relativo. 

Além disso, pugnam pela nulidade da fiscalização promovida, ao argumento da abusividade da autoridade fiscalizadora, que impediu a participação da advogada constituída pela Fazenda Santa Laura para acompanhar a oitiva dos trabalhadores, questionando, outrossim, a ausência de observância do critério da "dupla visita". 

Ao final, refutam a ideia de expropriação da propriedade rural, por se tratar de propriedade produtiva. 

Analiso.

Consta dos autos que, em 09/06/2017, a Fazenda Santa Laura foi autuada por  grupo especial de fiscalização móvel, composto por  Auditor-fiscal do Trabalho, Defensor Público, Procurador do Trabalho, Policial Rodoviário Federal em face da situação dos trabalhadores submetidos a condições degradantes de trabalho, tendo sido constatadas várias irregularidades no local (ID. 1437a88 - ID. 841e1fc).

Naquela oportunidade, após a inspeção do local do estabelecimento e entrevista dos funcionários, a autoridade administrativa responsável pela fiscalização concluiu que os trabalhadores eram submetidos a condições análogas às de escravos, conforme consignado especificamente no auto de infração n. 21.249.783-9 (ID. 4f67d7a), hipótese que dispensa a dupla visita, diga-se de passagem.

Fotos da fiscalização retratam: banheiro sujo; chuveiro improvisado com madeira e ladeado por lona preta; pia sem escoamento, sendo a água despejada no chão; bombas de pulverização de veneno jogadas ao relento; buraco onde os trabalhadores descartavam o lixo produzido; cama improvisada com tijolos e madeira; e piso de chão batido (ID. 4f67d7a - ID. 6c3c5d6).

Esclareço, por oportuno, que compete à União organizar e manter a inspeção do trabalho (art. 21, XXIV, CF), sendo o Ministério do Trabalho e Emprego o órgão competente para tanto. Em razão disso, incumbe os Auditores-fiscais, entre outras atribuições, a verificação dos registros em CTPS, com fim de reduzir os índices de informalidade (art. 11, II, da Lei 10.593/2002).

No que diz respeito à fiscalização, não há falar em cerceamento de defesa, estando correta a postura do Auditor-fiscal no sentido de obstar a presença da advogada (constituída pela sociedade) na oitiva dos trabalhadores, pois tal atitude constrangeria os obreiros a expor suas versões dos fatos.

Ademais, o auto de infração possui presunção relativa de veracidade, cabendo aos infratores o ônus de provar a tese alegada, mister do qual não se desvencilhou, pois a prova documental produzida em juízo não foi suficiente para corroborar sua versão dos fatos, uma vez que não demonstrada a regularidade das relações de trabalho.

A parte demandada nem, ao menos, produziu prova oral na instrução da presente ação civil pública, pois a única pessoa conduzida à audiência foi ouvida pelo juízo na condição de informante, em razão do vínculo profissional dela com a causa, qual seja, patrona constituída pela sociedade. 

Outrossim, o sócio administrador da fazenda, Cyro Pires Xavier, em seu depoimento, admitiu que o local onde os trabalhadores foram encontrados não era apropriado para moradia, servindo apenas como ponto de apoio para os prestadores de serviços, destinado à guarda de ferramentas. Veja:

"[...] que as casas estavam sendo construídas na época da fiscalização, as obras foram terminadas e atualmente servem como moradia e barracão para guardar maquinários e sal; que atualmente existem 11 casas na fazenda, sendo 07 no retiro; que cada casa comporta uma família; que 11 famílias residem na fazenda; que o local onde os trabalhadores foram encontrados, não era uma casa, mas sim um ponto de apoio para o prestador de serviços guardar ferramentas; que esse imóvel foi disponibilizado pela fazenda; que não tinha ciência que moravam pessoas nesse local onde foi disponibilizado para o tomador de serviços guardar as suas ferramentas [...]" (ID. cabc191 - Pág. 3 - Destaquei)

Nesse contexto, evidente o trabalho em condições degradantes, consistentes na precariedade da moradia, higiene e segurança oferecidas aos trabalhadores encontrados pelo grupo especial de fiscalização, destacando-se a falta de instalações sanitárias e dormitórios adequados no alojamento, bem como o não fornecimento de água potável.

Entretanto, para a caracterização da figura do trabalho em condições análogas a de escravo, além da violação do bem jurídico "dignidade", é imprescindível ofensa à "liberdade", consubstanciada na restrição da autonomia dos trabalhadores, quer seja para dar início ao contrato laboral, quer seja para findá-lo quando bem entender.

Nessa perspectiva, leciona Jairo Lins de Albuquerque, ao tratar sobre o Direito do Trabalho brasileiro:

"[...] trabalho escravo é aquele em que o empregador sujeita o empregado a condições de trabalho degradantes, inclusive quanto ao meio ambiente em que irá realizar sua atividade laboral, submetendo-o, em geral, a constrangimento físico e moral que vai desde a deformação do seu consentimento ao celebrar o vínculo empregatício, passando pela proibição imposta ao obreiro de resilir o vínculo quando bem entender , tudo motivado pelo interesse mesquinho de ampliar os lucros às custas da exploração do trabalhador" ( apud MIRAGLIA, Lívia Mendes Moreira. Trabalho escravo contemporâneo: conceituação à luz do princípio da dignidade da pessoa humana. 2. ed. São Paulo: LTr, 2015, p. 132, g. n.)

É cediço que, no trabalho escravo contemporâneo, além de humilhado e submetido a condições degradantes de trabalho, o obreiro é obstado de rescindir o contrato ou de deixar o local de trabalho a qualquer tempo. Tal interpretação evita que todo trabalho indigno (que é gênero) seja classificado como trabalho escravo (que é espécie).

Nessa perspectiva, colho julgado do c. TST, onde o Ministro Cláudio Brandão tratou da diferença entre trabalho escravo e trabalho degradante, pontuando que " O trabalho degradante pode ser compreendido como aquele em que não há o respeito mínimo às obrigações decorrentes do contrato, não se confundindo com o trabalho análogo à condição de escravo " (TST-AIRR-101800-82.2008.5.09.0562).

Veja a ementa:

"AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA EM FACE DE DECISÃO PUBLICADA ANTES DA VIGÊNCIA DA LEI Nº 13.015/2014. TRABALHO DEGRADANTE. TIPIFICAÇÃO. No caso, a Corte de origem reconheceu a existência de "inúmeras violações aos direitos trabalhistas dos empregados das rés, dentre eles, em especial, a ausência de condições básicas de higiene, como ausência de sabão para lavar as mãos antes das refeições, bem como ausência de lugar apropriado para as refeições e por fim, falta de banheiros em consonância com a NR 31". [...] não há que se confundir o conceito penal para o trabalho análogo à condição de escravo, com aquele em que não há o atendimento às condições mínimas de proteção, evidenciando, na menor das hipóteses, desprezo pela vida humana . O trabalho degradante pode ser compreendido como aquele em que não há o respeito mínimo às obrigações decorrentes do contrato, não se confundindo com o trabalho análogo à condição de escravo, que o pressupõe. Todo trabalho em que o ser humano é desprezado nos valores mínimos de sua dignidade deve ser como tal considerado. Dessa forma, não há como considerar caracterizada a prática de trabalho análogo à condição de escravo, na perspectiva da conceituação penal, ainda que reconhecido o inadimplemento das obrigações mínimas do contrato, que atinge de igual modo, o patrimônio imaterial do empregado, motivo pelo qual deve ser mantido o julgado. Agravo de instrumento a que se nega provimento." (TST-AIRR-101800-82.2008.5.09.0562, 7ª Turma, Rel. Min. Cláudio Brandão - Destaquei).

Aliás, na hipótese de restrição da liberdade, tal circunstância deve ser registrada nos relatórios de fiscalização e nas manifestações do órgão ministerial, para a caracterização do trabalho em condições análogas à de escravo. Nesse sentido, segue parcela da doutrina, a qual me filio. Veja:

"[...] tenho defendido que essa circunstância, a restrição à liberdade, quando verificada, deve constar dos relatórios dos auditores-fiscais e de todas as manifestações de membros do Ministério Público, Federal ou do Trabalho, pois ela é essencial para a caracterização do trabalho em condições análogas à de escravo . Note-se, por oportuno, que não é somente da liberdade de locomoção que estou falando, mas principalmente do que denomino de s ujeição extremada [...]" (BRITO, José Cláudio Monteiro de. Trabalho escravo: caracterização jurídica. e. ed. - São Paulo: LTr Editora, 2017. Pág. 58. Grifei).

No entanto, in casu , não há relato de restrição da liberdade dos trabalhadores nos relatórios da fiscalização, mas sim declarações no sentido de que não havia pessoas armadas, nem agressões ou ameaças, gozando os trabalhadores de folgas geralmente aos domingos. Senão vejamos:

"[...] QUE n a fazenda não há pessoas armadas e não houve casos de trabalhadores agredidos ou ameaçados ; QUE, há 04 dias atrás, um empregado chamado por VINIM sofreu um acidente de trabalho, quando um esticador de arame soltou em seu peito, porém ele não foi ao médico, sendo-lhe fornecido apenas mastruz; QUE VINIM ficou cerca de 3 dias sem trabalhar e possivelmente não recebeu por esses dias; QUE MARINALDO mora na casa sede da fazenda, distribui o serviço e faz os pagamentos devidos para RAIMUNDO JOSÉ MINGUINS; QUE não ha folgas regulares, folgando em alguns domingos , porém sem remuneração; QUE o trabalhador folgava e ficava na própria fazenda em razão da falta de meios de transporte;" (JORGE VAN SERRA - ID. 385daca - Pág. 1 - Destaquei)

Em síntese, não há registro de cerceio de liberdade dos trabalhadores, quer seja por meio de coação/ameaça, dívidas contraídas, vigilância ostensiva, limitação ao uso de meios de transporte, retenção de documentos e/ou objetos pessoas, quer seja por intermédio de outro artifício, utilizado com fim de reter os obreiros no local de trabalho.

Na verdade, os relatos dos trabalhadores indicam anuência espontânea ao pacto laborativo, com possibilidade de ir e vir do local de trabalho a qualquer momento, não obstante a ausência de transporte público regular, conforme é possível depreender das declarações a seguir transcritas:

"que TRABALHA na fazenda desde 24/05/2017; que sua função era cerqueiro; que trabalhou 7 diárias de cerqueiro; que o valor da diária era R$ 70,00 ( setenta reais); que saia às 06:00 e parava às 11:00 para almoçar; que retornava ao serviço de 12:00 até as 16:00; que almoçava no local do serviço; que, após as diárias, foi dia 02/06/2017 para a cidade receber o pagamento, mas o pagamento não saiu; que voltou para fazend a sem receber as diárias e trabalhou mais 2 diárias e meia; [...] que seu ZÉ morava do lado da sua casa na cidade e perguntou onde ele trabalhava; que seu ZÉ disse que trabalhava na fazenda SANTA LAURA; que perguntou ao seu ZÉ se tinha serviço para ele na diária, tendo seu ZÉ respondido que sim; que pediu ao seu ZÉ para ir trabalhar na fazenda Santa Laura; [...] que seu ZÉ pediu autorização do seu pai para trabalhar; Que ia na moto de seu Sé para o local de trabalho no interior ; Que mesmo no dia de folga, não tinha como sair da fazenda, pois não tinha transporte [...]" ( MAKS WILHAN OLIVERIA QUERIOZ - ID. 3eea536/ID. b4874b8)

"[...] QUE já passaram muitos trabalhadores por lá mas que não sabe nem tiver a conta de tantos que foram; QUE muitos trabalhadores chegam na fazenda e quando veem o alojamento já vão embora; QUE outros chegam e apenas juntam algum dinheiro para já irem embora [...]" ( KESSI JHONY NOGUEIRA CUNHA - ID. e36cd40 - Pág. 1 - Destaquei)

"[...] QUE já recebeu três mil reais de salário no mês de março; QUE recebe ás vezes em cheque e às vezes em dinheiro: QUE quando recebe em cheque vai ao Banco Sicred para trocar por dinheiro ; QUE o Sr. Zé faz o pagamento [...]" (MARCOS JHONY NOGUEIRA CUNHA - ID. cdea2b5 - Destaquei)

Ante o exposto, dou provimento ao apelo para descaracterizar o trabalho em condições análogas às de escravo, afastando a hipótese de expropriação da propriedade rural (confisco), por corolário lógico.

Todavia, subsiste a responsabilidade civil pelas condições degradantes de trabalho constadas durante a fiscalização do imóvel. " (negritei)

Nas razões da revista, o Ministério Público investe contra a descaracterização do trabalho em condições análogas à de escravo, destacando que o acórdão regional " reconhece formalmente a ocorrência de trabalho em condições degradantes, cujo artigo 149 do Código Penal equipara ao trabalho em condições análogas à de escravo ". Alega que " não é somente o cerceamento da liberdade de ir e vir ou o trabalho forçado que caracteriza o trabalho escravo contemporâneo, mas, sobretudo (e o que é mais comum), o trabalho em condições degradantes, o qual restou vastamente comprovado nos autos ". Defende o reconhecimento do trabalho em condições análogas à de escravo e, consequentemente, o restabelecimento do procedimento expropriatório. Indica violação dos arts. 149 do Código Penal, 184, 186, III e IV, e 243 da Constituição, Federal, 9º, §§ 4º e 5º, da Lei nº 8.629/93, 1º, 6º, 15 e 23 da Lei nº 8.257/91. Transcreve aresto do STF.

O recurso comporta conhecimento.

De início, cabe referir que os trechos indicados no recurso de revista tratam efetivamente da tese jurídica defendida pelo Tribunal Regional e possuem relação com o contraponto trazido no recurso, razão por que tenho por atendidos os requisitos do dispositivo do §1º-A, I, do art. 896 da CLT.

Publicado o acórdão regional na vigência da Lei 13.467/2017, incide o disposto no art. 896-A da CLT, que exige, como pressuposto ao exame do recurso de revista, a transcendência econômica, política, social ou jurídica (§1º, incisos I, II, III e IV).

No caso, é de ser reconhecida a transcendência social, ínsita às ações civis públicas movidas pelo Ministério Público do Trabalho, bem como a transcendência econômica, diante do elevado valor atribuído à causa (R$ 100.000.000,00; fl. 96).

Entendo presente, ainda, a transcendência jurídica da causa, na medida em que a solução da controvérsia envolve a interpretação de dispositivo legal em relação à qual ainda não há jurisprudência consolidada nesta Corte, tampouco decisão com efeito vinculante do Supremo Tribunal Federal.

Destaco, em reforço, que o STF reconheceu a repercussão geral em matéria pertinente, relativa à " Constitucionalidade da diferenciação das condições de trabalho necessárias à tipificação do trabalho como degradante em razão da realidade local em que realizado e o standard probatório para condenação pelo crime de redução a condição análoga à de escravo " (Tema 1158):

RECURSO EXTRAORDINÁRIO. DIREITO PENAL. REDUÇÃO A CONDIÇÃO ANÁLOGA À DE ESCRAVO. ARTIGO 149 DO CÓDIGO PENAL. TIPICIDADE. STANDARD PROBATÓRIO. CONDIÇÕES DE TRABALHO DEGRADANTE. REALIDADES DO TRABALHO RURAL E DO TRABALHO URBANO. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. REDUÇÃO DAS DESIGUALDADES. VALORES SOCIAIS DO TRABALHO. RELEVÂNCIA DA QUESTÃO CONSTITUCIONAL. MANIFESTAÇÃO PELA EXISTÊNCIA DE REPERCUSSÃO GERAL. (RE 1323708 RG, Relator(a): MINISTRO PRESIDENTE, Tribunal Pleno, julgado em 06/08/2021, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-164 DIVULG 17-08-2021 PUBLIC 18-08-2021)

Na hipótese dos autos, a Corte de origem, embora tenha considerado ser " evidente o trabalho em condições degradantes, consistentes na precariedade da moradia, higiene e segurança oferecidas aos trabalhadores encontrados pelo grupo especial de fiscalização, destacando-se a falta de instalações sanitárias e dormitórios adequados no alojamento, bem como o não fornecimento de água potável ", afastou a caracterização do trabalho em condições análogas às de escravo, ao entendimento de que, " para a caracterização da figura do trabalho em condições análogas a de escravo, além da violação do bem jurídico ‘dignidade’, é imprescindível ofensa à ‘liberdade’, consubstanciada na restrição da autonomia dos trabalhadores, quer seja para dar início ao contrato laboral, quer seja para findá-lo quando bem entender ".

Todavia, a nova redação dada ao art. 149 do Código Penal pela Lei nº 10.803/2003 ampliou as formas de caracterização da redução à condição análoga à de escravo. Eis o respectivo teor:

"Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto:

Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência.

§ 1 o Nas mesmas penas incorre quem:

I – cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho;

II – mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho.

§ 2 o A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido:

I – contra criança ou adolescente;

II – por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem."

Antes da alteração legislativa, o dispositivo (" Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos. ") não especificava o que caracterizaria a condição análoga à de escravo, prevalecendo o entendimento de que necessária a ocorrência de restrição à liberdade em sentido estrito.

Contudo, a partir da alteração de 2003, o cerceio à liberdade deixa de ser imprescindível à caracterização do crime, que igualmente ocorre pela sujeição a jornada exaustiva ou a condições degradantes de trabalho.

Com efeito, o caput da redação atual do dispositivo elenca condutas alternativas que, isoladamente, são suficientes à caracterização do tipo penal; quais sejam: submeter alguém a trabalhos forçados; ou submeter alguém a jornada exaustiva; ou sujeitar alguém a condições degradantes de trabalho; ou restringir, por qualquer meio, a locomoção de alguém em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto.

Trata-se, pois, " de crime de ação múltipla e conteúdo variado. Bastando que uma ação ou todas sejam praticadas para que se defina a conduta criminosa " (WÜLFING, Juliana. Jurisprudência Comentada. STJ. Delito de submissão à condição análoga à de escravo que se configura independente de restrição à liberdade dos trabalhadores . REVISTA DOS TRIBUNAIS. São Paulo: RT, v. 109, n. 1021, nov. 2020; p. 379).

Houve, portanto, uma ampliação dos bens jurídicos tutelados pela norma penal - " da liberdade para, também e principalmente, a dignidade da pessoa humana " (BRITO FILHO, José Cláudio Monteiro de. Trabalho escravo: caracterização jurídica. São Paulo: LTr, 2020, 3. ed., p. 81) , " de modo que não se faz necessário o cerceamento à liberdade para que reste configurado o crime em comento " (MARANHÃO, Ney Stany Morais; MESQUITA, Valena Jacob Chaves; GARCIA, Anna Marcella Mendes. A aplicação do princípio jusambiental do poluidor-pagador às situações de trabalho análogo ao de escravo . Revista Direito das Relações Sociais e Trabalhistas, Brasília, DF, v.5, n.1, jan./abr.,2019, p. 208. Disponível em:  . Acesso em: 18/01/2022).

Dessa forma, " o trabalho em condições análogas à de escravo é reconhecido, hoje em dia, a partir do momento em que há o desrespeito ao atributo maior do ser humano, que é a sua dignidade, e que ocorre, do ponto de vista do trabalho humano, quando é negado ao trabalhador um conjunto mínimo de direitos que a Organização Internacional do Trabalho convencionou chamar de trabalho decente " - conceito formalizado em 1999, que sintetiza a missão histórica daquela agência, de " promover oportunidades para que homens e mulheres obtenham um trabalho produtivo e de qualidade, em condições de liberdade, equidade, segurança e dignidade humanas, sendo considerado condição fundamental para a superação da pobreza, a redução das desigualdades sociais, a garantia da governabilidade democrática e o desenvolvimento sustentável " (PEREIRA, Paulo de Tarso. O desafio de coibir o trabalho em condições análogas ao de escravo no Brasil . Revista de Direito do Trabalho. São Paulo: RT, v. 204, ano 45, ago. 2009; p. 196) (; acesso em 04/04/2022).

Reconhece-se, então, que " o trabalho prestado na condição análoga à de escravo é gênero, do qual são espécies o trabalho forçado e o trabalho degradante " (PEREIRA, Paulo de Tarso. O desafio de coibir o trabalho em condições análogas ao de escravo no Brasil . Revista de Direito do Trabalho. São Paulo: RT, v. 204, ano 45, ago. 2009; p. 196).

Por sua vez, entende-se como condição degradante de trabalho " a negação da dignidade humana pela violação de direito fundamental do trabalhador, especialmente os dispostos nas normas de proteção do trabalho e de segurança, higiene e saúde " (BRAGA, Mauro Augusto Ponce de Leão; SÁ, Emerson Victor Hugo Costa de; MONTEIRO, Juliano Ralo. Responsabilidade civil no âmbito das cadeias produtivas em situações de trabalho escravo contemporâneo. Revista Veredas do Direito: direito ambiental e desenvolvimento sustentável, Belo Horizonte, MG, v. 18, n. 40, p. 79-111, jan./abr. 2021).

Essa compreensão abrangente do preceito legal, a par de mais consentânea com o contexto da escravidão contemporânea, é a que melhor concretiza os princípios e valores consagrados na Constituição Federal, dentre os quais destaco:

"Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

(...)

III - a dignidade da pessoa humana;

IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;

(...)

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(...)

III - ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante;

(...)

XXIII - a propriedade atenderá a sua função social;

(...)

Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:

XXII - redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança;

(...)

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

(...)

III - função social da propriedade;

(...)

Art. 193. A ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais.

(...)

Art. 243. As propriedades rurais e urbanas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou a exploração de trabalho escravo na forma da lei serão expropriadas e destinadas à reforma agrária e a programas de habitação popular, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei, observado, no que couber, o disposto no art. 5º.  

Oportuno rememorar algumas das normas internacionais sobre a temática do trabalho escravo:

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, prevê, em seu art. 4º, que " Ninguém será mantido em escravatura ou em servidão; a escravatura e o trato dos escravos, sob todas as formas, são proibidos " (; acesso em 02/04/2022).

Por sua vez, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, de 1966, promulgado no Brasil em 1992, estabelece, sem seu art. 8º, que " 1. Ninguém poderá ser submetido à escravidão; a escravidão e o tráfico de escravos, em todos as suas formas, ficam proibidos. 2. Ninguém poderá ser submetido à servidão. " (planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0592.htm; acesso em 02/04/2022)

O Pacto de São José da Costa Rica (Convenção Americana sobre Direitos Humanos), de 1969, ratificado pelo Brasil em 1992, dispõe, em seu art. 6º, que " 1. Ninguém pode ser submetido à escravidão ou a servidão, e tanto estas como o tráfico de escravos e o tráfico de mulheres são proibidos em todas as formas " e que " 2. Ninguém deve ser constrangido a executar trabalho forçado ou obrigatório ". (; acesso em 1º/04/2022)

A Convenção 29 da OIT, aprovada em 1930 e ratificada pelo Brasil em 1956, define " trabalho escravo contemporâneo ", em seu art. 2º, como sendo " todo trabalho ou serviço exigido de um indivíduo sob a ameaça de qualquer penalidade e para o qual ele não se ofereceu de espontânea vontade ". E dispõe, em seu art. 1º, que todos os Estados signatários " se obrigam a suprimir o emprego do trabalho forçado ou obrigatório sob todas as suas formas no mais curto prazo possível ". (; acesso em 1º/04/2022)

Na mesma esteira, a Convenção 105 da OIT, de 25 de junho de 1957, ratificada pelo Brasil em 1965, dispõe, em seu art. 1º, que " Qualquer Membro da Organização Internacional do Trabalho que ratifique a presente convenção se compromete a suprimir o trabalho forçado ou obrigatório ". E enfatiza, em seu art. 2º, que " Qualquer Membro da Organização Internacional do Trabalho que ratifique a presente convenção se compromete a adotar medidas eficazes, no sentido da abolição imediata e completa do trabalho forçado ou obrigatório ". (; acesso em 1º/04/2022)

As disposições dessas duas últimas foram reforçadas pela OIT, por meio da Declaração sobre os Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho, de 1998 , " ao definir, no rol de Direitos Humanos dos Trabalhadores, o direito à eliminação de todas as formas de trabalho forçado ou compulsório " (; acesso em 02/04/2022) (DELGADO, Mauricio Godinho., DELGADO, Gabriela Neves. A Declaração de 1998 da OIT sobre os princípios e direitos fundamentais no trabalho: parâmetros de um marco civilizatório e regulatório para os direitos humanos dos trabalhadores . O centenário da Organização Internacional do Trabalho do Brasil / Ana Virginia Moreira Gomes, Antônio Rodrigues de Freitas Júnior, José Francisco Siqueira Neto – Belo Horizonte: Editora Virtualis, 2019. 543p., p. 275).

Cabe observar que, embora não haja menção expressa às condições degradantes de trabalho nos instrumentos já referidos, o Brasil ratificou várias normas internacionais que vedam o tratamento degradante, a exemplo do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, de 1966 - que dispõe, em seu art. 7º, que " Ninguém poderá ser submetido à tortura, nem a penas ou tratamento cruéis, desumanos ou degradantes " (; acesso em 1º/04/2022) - ; da já mencionada Convenção Americana sobre Direitos Humanos - que estabelece, em seu art. 5º, 2, que " Ninguém deve ser submetido a torturas, nem a penas ou tratos cruéis, desumanos ou degradantes " () -; e do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966, promulgado no Brasil em 1992 (; acesso em 02/04/2022) , que, inclusive, " teve grande importância para a legislação brasileira, servido de fonte material para as disposições contidas no art. 149 do Código Penal ", destacando-se " os arts. 6º, 7º, 8º e 9º, os quais estabelecem direitos indispensáveis para que os trabalhadores tenham a sua dignidade respeitada, indicando os direitos mínimos desses trabalhadores " (CURVO, Mauro Roberto Vaz. Evolução Normativa dos Tratados Internacionais de Trabalho Escravo e sua Aplicação no Direito Brasileiro . Direito do trabalho contemporâneo: pandemia, reforma trabalhista e aspectos controversos. / organização de Maria Alaíde Bruno Teixeira, Edson Oliveira da Silva./ Curitiba: Juruá, 2021. 186p., p. 142).

Além disso, consoante defendem BRITO FILHO e GARCIA, os instrumentos normativos da OIT, embora não tragam " descrição exaustiva das situações em que seriam aplicáveis, tal qual o art. 149 do Código Penal brasileiro faz, ainda assim, subsumem-se a todas as hipóteses de trabalho em condições análogas à de escravo, visto que estas são assim consideradas diante do seu condão violador da dignidade humana " (BRITO FILHO, José Claudio Monteiro de. GARCIA, Anna Marcella Mendes. O combate ao trabalho escravo no Brasil à luz da regulamentação da Organização Internacional do Trabalho . O centenário da Organização Internacional do Trabalho do Brasil / Ana Virginia Moreira Gomes, Antônio Rodrigues de Freitas Júnior, José Francisco Siqueira Neto – Belo Horizonte: Editora Virtualis, 2019. 543p. p. 376).

É de se destacar, ainda, que a Corte Interamericana de Direitos Humanos já sinalizou "que a definição de trabalho escravo e formas análogas, insculpida no art. 149 do Código Penal, está em consonância com a Convenção Americana de Direitos Humanos ". Indicou, ainda, que " o conteúdo do tipo penal referido deve ser utilizado como subsídio interpretativo para a delimitação do conteúdo normativo do ilícito de escravidão, previsto no art. 6º da Convenção Americana ", uma vez que, " à luz do princípio da interpretação pro personae , o intérprete deve sempre adotar a interpretação mais favorável à promoção dos direitos humanos ". E, no caso do Brasil, a opção do legislador por incluir no tipo penal " outras formas análogas à escravidão, não previstas no Direito Internacional dos direitos humanos (e.g. trabalho em jornadas exaustivas), mostra-se benéfico à proteção da dignidade da pessoa humana " (RODRIGUES JUNIOR, Edson Beas. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso trabalhadores da Fazenda Brasil Verde vs. Brasil. Sentença de 20 de outubro de 2016. Exceções preliminares, mérito, reparações e custas. Revista Fórum Justiça do Trabalho, Belo Horizonte, ano 34, n. 400, p. 69-84, abr. 2017; p. 78-9).

Por outro lado, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos assinalou que a tentativa de restringir, por meio da Portaria MTB nº 1.129/2019, a caracterização de condição análoga à de escravo definida no art. 149 do Código Penal, excluindo as modalidades trabalho forçado , jornada exaustiva e condições degradantes de trabalho , representou " um retrocesso na defesa dos direitos do trabalhador no campo ". Sendo assim, aquela Comissão saudou " a decisão do Supremo Tribunal Federal em suspender liminarmente " a referida Portaria. (nter-American Commission on Human Rights. Situação dos direitos humanos no Brasil : Aprovado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos em 12 de fevereiro de 2021 / Comissão Interamericana de Direitos Humanos; p. 56).

A caracterização da redução a condição análoga à de escravo já foi objeto de análise pelo Pleno do Supremo Tribunal Federal, o qual sinalizou que a sujeição do trabalhador a condições degradantes é suficiente para a configuração do crime previsto no art. 149 do Código Penal. Confira-se:

"PENAL. REDUÇÃO A CONDIÇÃO ANÁLOGA A DE ESCRAVO. ESCRAVIDÃO MODERNA. DESNECESSIDADE DE COAÇÃO DIRETA CONTRA A LIBERDADE DE IR E VIR. DENÚNCIA RECEBIDA. Para configuração do crime do art. 149 do Código Penal, não é necessário que se prove a coação física da liberdade de ir e vir ou mesmo o cerceamento da liberdade de locomoção, bastando a submissão da vítima "a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva" ou "a condições degradantes de trabalho", condutas alternativas previstas no tipo penal. A "escravidão moderna" é mais sutil do que a do século XIX e o cerceamento da liberdade pode decorrer de diversos constrangimentos econômicos e não necessariamente físicos. Priva-se alguém de sua liberdade e de sua dignidade tratando-o como coisa e não como pessoa humana, o que pode ser feito não só mediante coação, mas também pela violação intensa e persistente de seus direitos básicos, inclusive do direito ao trabalho digno. A violação do direito ao trabalho digno impacta a capacidade da vítima de realizar escolhas segundo a sua livre determinação. Isso também significa "reduzir alguém a condição análoga à de escravo". Não é qualquer violação dos direitos trabalhistas que configura trabalho escravo. Se a violação aos direitos do trabalho é intensa e persistente, se atinge níveis gritantes e se os trabalhadores são submetidos a trabalhos forçados, jornadas exaustivas ou a condições degradantes de trabalho, é possível, em tese, o enquadramento no crime do art. 149 do Código Penal, pois os trabalhadores estão recebendo o tratamento análogo ao de escravos, sendo privados de sua liberdade e de sua dignidade. Denúncia recebida pela presença dos requisitos legais." (Inq 3412, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão: ROSA WEBER, Tribunal Pleno, julgado em 29/03/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-222 DIVULG 09-11-2012 PUBLIC 12-11-2012 RTJ VOL-00224-01 PP-00284)

Colhe-se, do voto da Min. Rosa Weber:

"Priva-se alguém de sua liberdade e de sua dignidade, tratando-o como coisa e não como pessoa humana, o que pode ser feito não só mediante coação, mas também pela violação intensa e persistente de seus direitos básicos, inclusive do direito ao trabalho digno. A violação do direito ao trabalho digno impacta a capacidade da vítima de realizar escolhas segundo a sua livre determinação. Isso também significa ‘reduzir alguém a condição análoga à de escravo’.".

Ressalta, ainda, o Min. Cezar Peluso:

"O tipo penal, ainda designado sob o nome de redução à condição análoga à de escravo, é crime que tem, objetivamente, como valor jurídico a ser protegido, a dignidade da pessoa vista na condição particular de trabalhador. Daí por que se tipifica por qualquer uma das figuras enumeradas no artigo 149 do Código Penal, não apenas as do caput , senão também nas dos parágrafos.

(...)

Já não se trata de delito contra a liberdade pessoal, trata-se de delito contra a dignidade da pessoa, considerada na condição social de trabalhador.

(...)

E basta, portanto, que esteja caracterizado o fato de um trabalhador ser submetido a condições aviltantes, humilhantes ou degradantes, para que se configure teoricamente o crime.

(...) a mim me parece que o fato de estar no título de liberdade individual é apenas resíduo da antiga concepção normativa, com a redação primitiva que o art. 149 tinha."

O Superior Tribunal de Justiça, nessa mesma esteira, " tem entendido que o crime de redução à condição análoga à de escravo prevê expressamente condutas alternativas e aptas, igualmente, a ofender o bem juridicamente tutelado, não sendo necessária a violação direta à liberdade de locomoção " (BRITO FILHO, José Cláudio Monteiro de; CASTILLO JUCÁ, Ana Carolina Del; DUARTE, Beatriz Bergamim. Posicionamento do Superior Tribunal de Justiça (STJ) em relação a questões envolvendo o trabalho em condições análogas às de escravo. In: FIGUEIRA, Ricardo Rezende; PRADO, Adonia Antunes; GALVÃO, Edna Maria (org.). Escravidão: moinho de gentes no século XXI. Rio de Janeiro : Mauad X, 2019. Seção VI: Trabalho escravo e revisão judicial. Cap. 11. p. 268).

Colaciono julgados reiterados daquela Corte:

"PENAL. PROCESSO PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. REDUÇÃO A CONDIÇÃO ANÁLOGA À DE ESCRAVO. ART. 149 DO CÓDIGO PENAL ? CP. CONDENAÇÃO RESTABELECIDA. ÓBICE DA SÚMULA N. 7 DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA ? STJ AFASTADO. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO.

1. Afasta-se a incidência da Súmula n. 7 do STJ ao caso concreto, pois a análise das questões formuladas no recurso especial independe de revolvimento do contexto fático probatório dos autos, mas tão somente da revaloração do panorama posto no próprio acórdão de segundo grau de jurisdição.

2. Sendo certo que o tipo previsto no art. 149 do CP é plurissubsistente, caracteriza-se o crime mediante a prática quaisquer das ações ali descritas. Precedentes.

3. Na hipótese, a sentença condenatória - reproduzida pelo acórdão recorrido - destacou a ausência de água potável, instalações sanitárias e alojamentos adequados, equipamentos de proteção pessoal, material de primeiros socorros, e endividamento dos trabalhadores mediante o adiantamento de valores para a aquisição de gêneros alimentícios, circunstâncias que caracterizam as condições degradantes de trabalho que correspondem ao tipo penal. 4. Agravo regimental desprovido." (AgRg no AgRg no REsp 1863229/PA, Rel. Ministro JOEL ILAN PACIORNIK, QUINTA TURMA, julgado em 14/09/2021, DJe 20/09/2021; destaquei)

"RECURSO ESPECIAL. REDUÇÃO À CONDIÇÃO ANÁLOGA À DE ESCRAVO. CONDENAÇÃO EM 1º GRAU. AFASTAMENTO PELO TRIBUNAL DE ORIGEM PORQUE NÃO CONFIGURADA RESTRIÇÃO À LIBERDADE DOS TRABALHADORES OU RETENÇÃO POR VIGILÂNCIA OU MEDIANTE APOSSAMENTO DE DOCUMENTOS PESSOAIS. CRIME DE AÇÃO MÚLTIPLA E CONTEÚDO VARIADO. SUBMISSÃO A CONDIÇÕES DE TRABALHO DEGRADANTES. DELITO CONFIGURADO. CONDENAÇÃO RESTABELECIDA. RECURSO PROVIDO. 1. Nos termos da jurisprudência desta Corte, o delito de submissão à condição análoga à de escravo se configura independentemente de restrição à liberdade dos trabalhadores ou retenção no local de trabalho por vigilância ou apossamento de seus documentos, como crime de ação múltipla e conteúdo variado, bastando, a teor do art. 149 do CP, a demonstração de submissão a trabalhos forçados, a jornadas exaustivas ou a condições degradantes. Precedentes. 2. Devidamente fundamentada a condenação pela prática do referido delito em razão das condições degradantes de trabalho e de habitação a que as vítimas eram submetidas, consubstanciadas no não fornecimento de água potável, no não oferecimento, aos trabalhadores, de serviços de privada por meio de fossas adequadas ou outro processo similar, de habitação adequada, sendo-lhes fornecido alojamento em barracos cobertos de palha e lona, sustentados por frágeis caibros de madeira branca, no meio da mata, sem qualquer proteção lateral, com exposição a riscos, não há falar em absolvição. 3. Recurso especial provido para restabelecer a sentença condenatória, determinando que o Tribunal de origem prossiga no exame do recurso de apelação defensivo." (REsp 1843150/PA, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 26/05/2020, DJe 02/06/2020; destaquei)

"AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. CRIME DO ART. 149 DO CÓDIGO PENAL. RESTRIÇÃO À LIBERDADE DO TRABALHADOR NÃO É CONDIÇÃO ÚNICA DE SUBSUNÇÃO TÍPICA. TRATAMENTO SUBUMANO AO TRABALHADOR. CONDIÇÕES DEGRADANTES DE TRABALHO. FATO TÍPICO . SÚMULA N. 568/STJ. AGRAVO NÃO PROVIDO.

1. O artigo 149 do Código Penal dispõe que configura crime a conduta de "reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto".

2. O crime de redução a condição análoga à de escravo pode ocorrer independentemente da restrição à liberdade de locomoção do trabalhador, uma vez que esta é apenas uma das formas de cometimento do delito, mas não é a única. O referido tipo penal prevê outras condutas que podem ofender o bem juridicamente tutelado, isto é, a liberdade de o indivíduo ir, vir e se autodeterminar, dentre elas submeter o sujeito passivo do delito a condições degradantes de trabalho. Precedentes do STJ e STF.

3. Incidência da Súmula 568/STJ: "O relator, monocraticamente e no Superior Tribunal de Justiça, poderá dar ou negar provimento ao recurso quando houver entendimento dominante acerca do tema.".

4. Agravo regimental não provido."

(AgRg no AREsp 1467766/PR, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 27/08/2019, DJe 10/09/2019; destaquei)

"AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. REITERAÇÃO DE RECURSO JÁ ANALISADO POR ESTA CORTE. PEDIDO DE EXTENSÃO DE ORDEM CONCEDIDA A CORRÉU PELO COLEGIADO DE ORIGEM. AUSÊNCIA DE SIMILITUDE FÁTICA-PROCESSUAL ENTRE OS DENUNCIADOS. REQUISITOS DO ART. 580 DO CPP NÃO ATENDIDOS. AGRAVO DESPROVIDO.

1. Nos termos do reconhecido na decisão ora agravada, no recurso ordinário ema análise, a toda evidência, são reiteradas as razões vinculadas no RHC n. 64.073/PI, já desprovido por esta Quinta Turma, isso porque há identidade de partes e da causa de pedir, o que constitui óbice ao seu conhecimento. Por certo, em ambos os feitos é deduzido pleito de trancamento da mesma ação penal (AP 32966-88.2014.4.01.4000), ora em curso na 3ª Vara da Seção Judiciária do Piauí, na qual é apurada a prática de crime de redução à condição análoga de escravo (CP, art. 149). A concessão da ordem em writ impetrado em favor de corréu na origem não justifica o reexame das questões fáticas e jurídicas já submetidas a exame por esta Corte, pois não elidem a conclusão deste Colegiado, no sentido na ausência de manifesta arbitrariedade a justificar o trancamento do processo-crime pela suposta carência de justa causa para persecução penal e a alegada inépcia da peça acusatória quanto ao réu.

2. O art. 580 do Código de Processo Penal prevê a extensão dos efeitos de decisões a corréus cuja situação fático-processual seja idêntica àquele em favor de quem foi ela proferida. No caso, porém, o Tribunal Regional Federal, ao indeferir pedido de extensão dos efeitos da ordem concedida a corréu no bojo do HC n. 0017059-74.2016.4.01.0000/PI, reconheceu que o paciente, como sócio-diretor RMS ENGENHARIA, assinou contratos de trabalho, rescisões contratuais e pedidos de demissão dos trabalhadores, figurando em tais documentos como "empregador", enquanto o acusado Tufi atuava como Diretor Presidente da Companhia Ferroviária do Nordeste - CFN, não sendo o responsável direto pela fiscalização das obras. Nesse passo, não se infere qualquer ilegalidade na decisão do Colegiado de origem a ser sanada por esta Corte.

3. No art. 149 do Código Penal são previstas condutas alternativas que, isoladamente, subsumem-se ao crime de redução a condição análoga à de escravo, tratando-se, portanto, de crime plurissubsistente. Assim, tendo sido atribuído ao réu o verbo "sujeitar alguém a condições degradantes de trabalho", o simples fato de não ter sido descrito cerceamento do direito de locomoção dos trabalhares explorados não denota a ausência de tipicidade das condutas descritas na peça acusatória.

4. Agravo regimental desprovido."

(AgRg no RHC 85.875/PI, Rel. Ministro RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, julgado em 24/04/2018, DJe 02/05/2018; destaquei)

"CONFLITO DE COMPETÊNCIA. PROCESSUAL PENAL. CRIME DE REDUÇÃO A CONDIÇÃO ANÁLOGA À DE ESCRAVO. ART. 149 DO CÓDIGO PENAL. RESTRIÇÃO À LIBERDADE DO TRABALHADOR NÃO É CONDIÇÃO ÚNICA DE SUBSUNÇÃO TÍPICA. TRATAMENTO SUBUMANO AO TRABALHADOR. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL.

1. Para configurar o delito do art. 149 do Código Penal não é imprescindível a restrição à liberdade de locomoção dos trabalhadores, a tanto também se admitindo a sujeição a condições degradantes, subumanas.

2. Tendo a denúncia imputado a submissão dos empregados a condições degradantes de trabalho (falta de garantias mínimas de saúde, segurança, higiene e alimentação), tem-se acusação por crime de redução a condição análoga à de escravo, de competência da jurisdição federal."

(CC 127.937/GO, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 28/05/2014, DJe 06/06/2014)

Na mesma linha, trago o seguinte julgado deste Tribunal:

"(...) RECURSO DE REVISTA INTERPOSTO PELO AUTOR. MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO. TRABALHO EM CONDIÇÕES ANÁLOGAS À DE ESCRAVO. CONFIGURAÇÃO. No caso em análise, o eg. Tribunal Regional considerou que " embora reconhecida a realização de trabalho em condições degradantes, não restou demonstrado nos autos a redução dos representados à condição análoga à de escravo ", concluindo que " em nenhum momento, houve alusão a qualquer impedimento à ampla liberdade de locomoção dos trabalhadores " e que " a liberdade de ir e vir é incompatível com a condição de trabalhador escravo ". Com a redação alterada do art. 149 do Código Penal pela Lei nº 10.803/2003, o tipo penal passou a trazer explicitamente o conceito do que vem a ser o crime de redução a condição análoga à de escravo, trazendo as hipóteses configuradoras, dentre as quais "sujeitar a condições degradantes de trabalho", exatamente a situação descrita pelo eg. Tribunal Regional. Sob esse enfoque, a caracterização do trabalho escravo não mais está atrelada condicionalmente à restrição da liberdade de locomoção do empregado - conceito revisto em face da chamada "escravidão moderna". É preciso aperfeiçoar a interpretação do fato concreto, de modo a adequá-lo ao conceito contemporâneo de trabalho escravo contemporâneo. Nesse sentido têm caminhado a jurisprudência e a doutrina. Uma vez configuradas as condições degradantes a que eram submetidos os empregados, evidenciado o trabalho em condição análoga à de escravo, o que se declara, nos exatos termos do art. 149 do Código Penal. Recurso de revista conhecido e provido. (...)" (ARR-53100-49.2011.5.16.0021, 6ª Turma, Relator Ministro Aloysio Correa da Veiga, DEJT 12/05/2017).

Por fim, trago à consideração a correlação entre condições degradantes de trabalho e violação da liberdade, desenvolvida por MIRAGLIA, segundo a qual " ’não há que se falar em existência de liberdade no contexto de uma relação trabalhista degradante’, pois apenas quem não é, de fato livre, se submete a situações humilhantes e vexatórias ". Dessa forma, sob o enfoque da liberdade substantiva, " as condições degradantes de trabalho também apresentam um atentado contra a liberdade " (MIRAGLIA, Lívia M. M.. Trabalho escravo contemporâneo: conceituação à luz do princípio da dignidade da pessoa humana. São Paulo: LTr, 2011, p. 148; citada por VIANNA, Giselle Sakamoto Souza. Liberdade formal e escravidão: um estudo sobre a morfologia do trabalho escravo contemporâneo em Mato Grosso, p. 679; in: Escravidão ilegal – migração, gênero e novas tecnologias em debate / organização Ricardo Rezende Figueira, Adonia Antunes Prado, Murilo Peixoto da Mota. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Mauad X, 2022. Capítulo 31)

Na espécie dos autos, a Corte de origem reconhece ser " evidente o trabalho em condições degradantes, consistentes na precariedade da moradia, higiene e segurança oferecidas aos trabalhadores encontrados pelo grupo especial de fiscalização, destacando-se a falta de instalações sanitárias e dormitórios adequados no alojamento, bem como o não fornecimento de água potável " (fl. 5248). Consigna que " a equipe de fiscalização encontrou um número elevado de pessoas em situação irregular, no total de 23 (vinte três) trabalhadores, em condições mínimas de saúde, higiene e segurança no local trabalho, incluindo um menor " (fl. 5252). Registra que " fotos da fiscalização retratam: banheiro sujo; chuveiro improvisado com madeira e ladeado por lona preta; pia sem escoamento, sendo a água despejada no chão; bombas de pulverização de veneno jogadas ao relento; buraco onde os trabalhadores descartavam o lixo produzido; cama improvisada com tijolos e madeira; e piso de chão batido " (fl. 5247).

Sendo assim, ante todo o alinhado, concluo que, estando devidamente delineado o trabalho em condições degradantes, a conclusão regional pela descaracterização da redução a condição análoga à de escravo viola o art. 149 do Código Penal.

Conheço , pois, do recurso, por violação do artigo 149 do Código Penal.

II – MÉRITO

1. TRABALHO EM CONDIÇÕES ANÁLOGAS ÀS DE ESCRAVO. LABOR EM CONDIÇÕES DEGRADANTES. CARACTERIZAÇÃO. DESNECESSIDADE DE RESTRIÇÃO À LIBERDADE DE LOCOMOÇÃO

A consequência lógica do conhecimento do recurso, por violação do artigo 149 do Código Penal, é o provimento da revista para restabelecer a sentença no tocante à caracterização do trabalho em condições análogas às de escravo.

E, uma vez caracterizada a redução de trabalhadores à condição análoga à de escravos, determina-se o retorno dos autos ao Tribunal de origem, a fim de que examine a questão relativa à expropriação da propriedade rural, veiculada no recurso ordinário da reclamada – que sequer chegou a ser analisada por aquela Corte, uma vez afastada a expropriação como mero corolário da descaracterização do trabalho em condição análoga à de escravo.

Em decorrência do retorno dos autos, fica prejudicado o exame da questão relativa ao valor da indenização por dano moral coletivo.

Recurso de revista provido.

ISTO POSTO

ACORDAM os Ministros da Primeira Turma do Tribunal Superior do Trabalho, por unanimidade, I – dar provimento ao agravo de instrumento para processar o recurso de revista; II - conhecer do recurso de revista no tema "trabalho em condições análogas às de escravo. caracterização", por violação do artigo 149 do Código Penal, e, no mérito, I) dar-lhe provimento para restabelecer a sentença no tocante à caracterização do trabalho em condições análogas às de escravo e determinar o retorno dos autos ao Tribunal de origem, a fim de que examine a questão relativa à expropriação da propriedade rural. Prejudicado o exame da questão relativa ao valor da indenização por dano moral coletivo.

Brasília, 27 de abril de 2022.

Firmado por assinatura digital (MP 2.200-2/2001)

HUGO CARLOS SCHEUERMANN

Ministro Relator