A C Ó R D Ã O
(3ª Turma)
GMMGD/ls/ef
AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO DE REVISTA. PROCESSO SOB A ÉGIDE DA LEI 13.467/2017 . 1. INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL. ASSÉDIO MORAL E SEXUAL. DESRESPEITO AOS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA, DA INVIOLABILIDADE PSÍQUICA (ALÉM DA FÍSICA) DA PESSOA HUMANA, DO BEM-ESTAR INDIVIDUAL (ALÉM DO SOCIAL) DO SER HUMANO, TODOS INTEGRANTES DO PATRIMÔNIO MORAL DA PESSOA FÍSICA. PROTOCOLO PARA JULGAMENTO COM PERSPECTIVA DE GÊNERO. 2. VALOR ARBITRADO PARA A INDENIZAÇÃO. PRINCÍPIOS DA PROPORCIONALIDADE E DA RAZOABILIDADE OBSERVADOS. A conquista e a afirmação da dignidade da pessoa humana não mais podem se restringir à sua liberdade e intangibilidade física e psíquica, envolvendo, naturalmente, também a conquista e afirmação de sua individualidade no meio econômico e social, com repercussões positivas conexas no plano cultural - o que se faz, de maneira geral, considerado o conjunto mais amplo e diversificado das pessoas, mediante o trabalho e, particularmente, o emprego. O direito à indenização por dano moral encontra amparo no art. 5º, V e X, da Constituição da República e no art. 186 do CCB/2002, bem como nos princípios basilares da nova ordem constitucional, mormente naqueles que dizem respeito à proteção da dignidade humana, da inviolabilidade (física e psíquica) do direito à vida, do bem-estar individual (e social), da segurança física e psíquica do indivíduo, além da valorização do trabalho humano. O patrimônio moral da pessoa humana envolve todos esses bens imateriais, consubstanciados, pela Constituição, em princípios fundamentais. Afrontado esse patrimônio moral, em seu conjunto ou em parte relevante, cabe a indenização por dano moral, deflagrada pela Constituição de 1988. Tratando-se de assédio sexual no trabalho, retratado por ações reiteradas de índole sexual ou por grave ação dessa natureza, praticadas por pessoa que integra a organização ou quadros da empresa contra subordinado ou colega, desponta ainda mais relevante a responsabilização pela afronta moral sofrida, porque abala sobremaneira e por longo período a autoestima, honra, vida privada e imagem da vítima, denotando também gestão empresarial desrespeitosa e descuidada em aspecto de alta relevância, segundo a Constituição da República (respeito à dignidade da pessoa humana; respeito à mulher trabalhadora). Registre-se que a diferença de tratamento de gênero ainda é uma lamentável realidade no Brasil, que gera elevado nível de tolerância a certos tipos de violência contra a mulher, caso do assédio sexual . Nesse sentido, a relação laboral, em face da assimetria de poder a ela inerente, mostra-se, infelizmente, como campo fértil à repercussão nociva da desigualdade estrutural de gênero. Diante disso, é dever do Poder Judiciário enfrentar esse problema grave da sociedade brasileira, buscando conferir efetividade ao princípio da igualdade substantiva previsto na Constituição e nos tratados internacionais dos quais o Brasil é parte em matéria de direitos humanos, a fim de evitar a continuidade das desigualdades e opressões históricas decorrentes da influência do machismo, do sexismo, do racismo e outras práticas preconceituosas, eliminando todas as formas de discriminação, em especial contra a mulher. Visando esse objetivo, o Conselho Nacional de Justiça editou a Recomendação 128, publicada em 15/2/022, que aconselha a magistratura brasileira a adotar o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero , nos casos que envolvem, entre outros, situações de assédio sexual. Inspirado nas Recomendações Gerais nº 33 e 35 do Comitê para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW) e na Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher ("Convenção de Belém do Pará"), todos da ONU, o Protocolo incentiva para que os julgamentos não incorram na repetição de estereótipos e na perpetuação de tratamentos diferentes e injustos contra as mulheres . Na hipótese , observa-se que o Tribunal Regional seguiu uma linha decisória consentânea com as recomendações do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, ao manter a sentença que reconheceu o acintoso dano moral sofrido pela Reclamante, derivado de importunação maliciosa e reiterada praticada por seu superior hierárquico. Conforme se observa no acórdão regional, o agressor habitualmente se utilizava de sua posição hierárquica (Gerente Geral da loja) para manter contato físico indesejado, com abraços não consentidos, bem como conversas inconvenientes, a exemplo de diversos convites para saírem juntos. Ele também exercia uma vigilância absolutamente inapropriada e anormal sobre o espaço de trabalho da Autora, lançando mão de seu poder de direção na rotina laboral para isolá-la de outros colegas homens e mantê-la sempre no seu campo de visão . Com efeito, o conteúdo da prova oral, transcrito no acórdão regional, mostrou com muita clareza a ofensa emocional/psicológica sofrida pela Trabalhadora, bem como a gravidade do constrangimento causado e a conduta censurável do agressor. De outro lado, a omissão da Empregadora em garantir um meio ambiente do trabalho livre de ocorrências de tal natureza necessariamente atrai a sua responsabilização pela reparação do dano sofrido. Não há dúvidas de que os atos ocorridos com a Obreira atentaram contra a sua dignidade, a sua integridade psíquica e o seu bem-estar individual - bens imateriais que compõem seu patrimônio moral protegido pela Constituição -, ensejando a reparação moral, conforme autorizam os incisos V e X do art. 5º da Constituição Federal e os arts. 186 e 927, caput , do CCB/2002. Em síntese, o Tribunal Regional, ao reconhecer o gravíssimo assédio moral/sexual praticado pelo superior hierárquico da Trabalhadora, a partir da prova oral produzida nos autos, adotou as recomendações do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, que induzem o equilíbrio de forças entre as Partes no processo judicial, considerando a hipossuficência material e processual da ofendida. Agravo de instrumento desprovido.
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Agravo de Instrumento em Recurso de Revista n° TST-AIRR-10139-94.2021.5.03.0186 , em que é Agravante AMERICANAS S.A. (EM RECUPERAÇÃO JUDICIAL) e é Agravado CAROLINA ROSA DOS SANTOS BARRETO GOMES .
O Tribunal Regional do Trabalho de origem denegou seguimento ao recurso de revista.
Inconformada, Parte Recorrente interpõe o presente agravo de instrumento, sustentando que o seu apelo reunia condições de admissibilidade.
Dispensada a remessa dos autos ao Ministério Público do Trabalho, nos termos do art. 95, § 2º, do RITST .
PROCESSO SOB A ÉGIDE DA 13.467/2017 .
É o relatório.
V O T O
I) CONHECIMENTO
Atendidos todos os pressupostos recursais, CONHEÇO do apelo.
II) MÉRITO
1. INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL. ASSÉDIO MORAL E SEXUAL. DESRESPEITO AOS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA, DA INVIOLABILIDADE PSÍQUICA (ALÉM DA FÍSICA) DA PESSOA HUMANA, DO BEM-ESTAR INDIVIDUAL (ALÉM DO SOCIAL) DO SER HUMANO, TODOS INTEGRANTES DO PATRIMÔNIO MORAL DA PESSOA FÍSICA. PROTOCOLO PARA JULGAMENTO COM PERSPECTIVA DE GÊNERO. 2. VALOR ARBITRADO PARA A INDENIZAÇÃO. PRINCÍPIOS DA PROPORCIONALIDADE E DA RAZOABILIDADE OBSERVADOS
O Tribunal Regional, no que interessa, assim decidiu:
Sobre o assédio sexual, em síntese, a reclamante narrou na inicial que, a partir de meados de 2015, passou a sofrer assédio sexual por parte do seu superior hierárquico, o gerente geral da loja, Sr. Ricardo, que fazia investidas de cunho sexual (Id 90e6cd5 - Pág. 4/5).
Em acesso ao link disponibilizado na certidão de Id ce81afd, foi possível assistir à íntegra da gravação de vídeo da audiência, ao que destaco alguns trechos sobre o tema.
A testemunha indicada pela reclamante , Rayan Fernandes da Luz, disse que trabalhou com o Sr. Ricardo, que era gerente geral. Ele ficava no meio da loja ou na gerência, mas na maior parte do tempo no 1º andar no meio da loja. O relacionamento entre eles era "normal", só coisa de "serviço mesmo". Já presenciou conversa do Ricardo com a autora, assuntos que fugiam do contrato de trabalho . " Ele ficava chamando ela para sair ", para ir em barzinho, para dar uma volta os dois, " ele pegava o braço dela, abraçava demais sem ela querer, puxava ela para perto de le". " Ele dava em cima dela mesmo", "conversinha mole", "paquerando ela ". Não presenciou nos convites nenhuma troca de vantagem relacionada ao contrato de trabalho. Já presenciou o Ricardo pegando no cabelo e na cintura da autora. Ela não gostava, pedia para ele parar e se afastar, saía de perto, mesmo ela pedindo ele não parava , esses episódios eram diários e na frente de todos, no meio da loja. Não tinha para quem ela pudesse reclamar, a outra gerente era abaixo do Sr. Ricardo. O Ricardo tinha ciúmes da autora, quando ela estava conversando com outro homem, ele "sempre dava um jeito de parar a conversa", mandando a pessoa ir fazer outra coisa . O Ricardo ia muito no departamento da autora, principalmente, quando ela estava sozinha . Não trabalhava no mesmo andar da autora, mas sempre abastecia mercadorias no 1º andar, colocava as mercadorias no setor dela. Tinham muitas mulheres na loja, com as mais velhas o comportamento do Ricardo era "normal", com as mais novas "tinha um pouquinho mais de conversa", mas "assediar era só a Carol", ficava muito em cima dela, pegando nela, anunciava ela no microfone quando ela sumia do campo de visão dele. A autora já reclamou com a supervisora Edna do assédio, todo mundo via, mas ninguém nunca fez nada. O Ricardo entrou na loja por volta de 2016, a autora já estava na loja, ele era "grosso demais" com todo mundo, falava palavrão demais.
Já a testemunha indicada pela ré, Iasmin Lopes Figueiredo, afirmou que conhece o Ricardo, já trabalhou com ele desde sua admissão até a saída dele, em fevereiro de 2020. Ele era gerente geral da loja. Não acompanhou conversas dele com a autora. O Ricardo era respeitoso, brincava, mas sempre com respeito, muito profissional. Nunca presenciou nenhuma ação direcionada as mulheres da loja. O auxiliar de lanchonete poderia abastecer gôndolas perto do caixa.
Em que pese a testemunha empresária não ter presenciado o alegado assédio sexual praticado pelo gerente Ricardo, entendo que o depoimento da testemunha obreira é suficiente para comprovar as alegações iniciais.
Veja-se que os fatos que ensejaram o assédio sexual sofrido no ambiente de trabalho ocorriam diariamente e, como informado pela testemunha obreira, no meio da loja e na frente de todos . E, mesmo considerando que o Sr. Ricardo teria sido transferido para a loja da autora em meados de 2016, o fato é que, diariamente, a autora era por ele assediada.
Além disso, a alegação recursal da ré de que o Sr. Ricardo "sequer era o indivíduo da mais alta hierarquia na empresa", não altera o deslinde do feito, visto que não há dúvidas de que ele era o gerente geral da loja em que a autora laborava e, consequentemente, o seu superior hierárquico.
Peço vênia para transcrever as sábias lições da Exma. Des. Adriana Goulart de Sena Orsini sobre o tema, cujos fundamentos adoto como razões de decidir:
O dever de coibir as condutas assediosas, moral e sexualmente, haja vista que as mesmas aviltam a dignidade da pessoa humana da Reclamante, é da empresa.
Em 2021 não é possível continuarmos colocando sobre os ombros de uma empregada, seja diretamente, seja terceirizada, seja responsabilidade por impedir o assédio e repelir as condutas, sendo que, regra geral, a trabalhadora precisa do emprego e ainda por cima o assediador é superior hierárquico, seja direta, seja indiretamente.
Infelizmente, ainda é normal que a mulher tenha que responder "educadamente" ou com "esvasivas" a contatos que não deveriam ocorrer.
Ainda que no Brasil a "paquera" seja algo tolerado por algumas empresas no espaço de trabalho, a delimitação quanto ao limite de superioridade hierárquica é o minímo que se pode esperar, ainda em espaços ditos permissivos.
Querer que a autora fosse grossa, limitadora, diante de alguém que tem possibilidade de impedir a sua contratação (quando terceirizada) e de prejudicá-la (quando empregada da reclamada) soa extremamente injusto, em sobrepeso na costas daquela que precisa da proteção do ambiente laboral sustentável e livre de assédio.
A empresa deveria ter punido o agressor, sujeito ativo de tais condutas, na pessoa de seu responsável, a fim de evitar que houvesse reiteração e que tais casos virem banais ou até mesmo, permitidos, face a ação e a não resposta.
A exigência de provas cabais, com análises em que se duvida da palavra da autora, ou como se ela fosse culpada pelas investidas, por ser mulher, por ser bonita, por ser nova, por estar trabalhando em um lugar onde existem homens, não é, data venia, mais admitida, sequer aceitável do ponto de vista do que se tem hoje em termos de estudos e pesquisas sobre a condição da mulher trabalhadora.
Acresça-se à fundamentação a necessária referência à Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, concluída em 9/6/94 e promulgada pelo Decreto n. 1973 de 1 de agosto de 1996, em especial os artigos 1o, 2o e 7o, letra g, a saber:
Artigo 1: Para os efeitos desta Convenção, entender-se-á por violência contra a mulher qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada.
Artigo 2: Entende-se que a violência contra a mulher abrange a violência física, sexual e psicológica.
a) ocorrida no âmbito da família ou unidade doméstica ou em qualquer relação interpessoal, quer o agressor compartilhe, tenha compartilhado ou não a sua residência, incluindo-se, entre outras turmas, o estupro, maus-tratos e abuso sexual;
b) ocorrida na comunidade e comedida por qualquer pessoa, incluindo, entre outras formas, o estupro, abuso sexual, tortura, tráfico de mulheres, prostituição forçada, seqüestro e assédio sexual no local de trabalho, bem como em instituições educacionais, serviços de saúde ou qualquer outro local; e
c) perpetrada ou tolerada pelo Estado ou seus agentes, onde quer que ocorra.
Artigo 7: Os Estados Partes condenam todas as formas de violência contra a mulher e convêm em adotar, por todos os meios apropriados e sem demora, políticas destinadas a prevenir, punir e erradicar tal violência e a empenhar-se em:
a) abster-se de qualquer ato ou prática de violência contra a mulher e velar por que as autoridades, seus funcionários e pessoal, bem como agentes e instituições públicos ajam de conformidade com essa obrigação;
b) agir com o devido zelo para prevenir, investigar e punir a violência contra a mulher;
c) incorporar na sua legislação interna normas penais, civis, administrativas e de outra natureza, que sejam necessárias para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher, bem como adotar as medidas administrativas adequadas que forem aplicáveis;
d) adotar medidas jurídicas que exijam do agressor que se abstenha de perseguir, intimidar e ameaçar a mulher ou de fazer uso de qualquer método que danifique ou ponha em perigo sua vida ou integridade ou danifique sua propriedade;
e) tomar todas as medidas adequadas, inclusive legislativas, para modificar ou abolir leis e regulamentos vigentes ou modificar práticas jurídicas ou consuetudinárias que respaldem a persistência e a tolerância da violência contra a mulher;
f) estabelecer procedimentos jurídicos justos e eficazes para a mulher sujeitada a violência, inclusive, entre outros, medidas de proteção, juízo oportuno e efetivo acesso a tais processos;
g) estabelecer mecanismos judiciais e administrativos necessários para assegurar que a mulher sujeitada a violência tenha efetivo acesso a restituição, reparação do dano e outros meios de compensação justos e eficazes;
h) adotar as medidas legislativas ou de outra natureza necessárias à vigência desta Convenção.
Ademais, sabe-se que há grande dificuldade na apresentação e valoração do conjunto probatório para solucionar os casos de assédio sexual no campo prático, considerando a ausência de vestígios físicos e, exatamente por isto, há especial relevância da palavra da vítima no contexto.
O assédio sexual é algo que nem sempre é de fácil apuração face a ausência de vestígios físicos passíveis de exame pericial. Portanto, ele é circundado muitas vezes por elementos de prova cujo nível de certeza pode ser relativizado considerando todo o conjunto probatório.
Diante da gravidade da conduta, o assédio sexual é o crime previsto no art. 216-A do Código Civil Brasileiro, Decreto-Lei nº 2.848 de 7 de dezembro de 1940, acrescentado em virtude da Lei nº 10.224 de 15 de maio de 2001, e cujo §2º foi incluído após a edição da Lei nº 12.015 de 7 de agosto de 2009, integrando, assim, o Capítulo I - Dos crimes contra a liberdade sexual, inserido no Título VI - Dos crimes contra a dignidade sexual.
A tipificação dos crimes sexuais no diploma penal é o resultado da evolução da sociedade, que passou a aprovar e exigir interferência do Estado nas relações íntimas dos indivíduos com o intuito de proteger a vítima. Em decorrência desse raciocínio, o legislador decidiu resguardar a dignidade sexual dos indivíduos:
A tutela da dignidade sexual, portanto, deflui do princípio da dignidade humana, que se irradia sobre todo o sistema jurídico e possui inúmeros significados e incidências. Isto porque o valor à vida humana, como pedra angular do ordenamento jurídico, deve nortear a atuação do intérprete e aplicador do direito, qualquer que seja o ramo da ciência onde se deva possibilitar a concretização desse ideal no processo judicial.(BRASIL. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Apelação Criminal nº 1.0145.17.026555-0/001, 2ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, Rel. Des. Matheus Chaves Jardim. Publicação no DJE em 23/08/2019).
"Constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função" é o tipo penal do art. 216-A do CP.
A partir da escolha de palavras elencadas pelo legislador, responsável por apresentar uma conceituação sucinta e direta, é possível identificar que o assédio sexual, em outras palavras, significa o atentado à liberdade sexual da vítima por meio de uma conduta perpetrada pelo indivíduo que está em posição de liderança em relação ao ofendido no ambiente de trabalho e, em razão dessa condição, aproveita-se para satisfazer sua lascívia de forma oportunista.
Observe-se que o tipo de poder exercido pelo assediador sobre a vítima, na maioria das vezes acaba por inibir a fala desta última no sentido de buscar uma punição, em razão do temor da retaliação por parte do agressor.
Seguindo na análise de dispositivo penal que diz respeito e impacta a análise no campo trabalhista, importa detectar que o núcleo do dispositivo legal supra é o verbo "constranger". Entretanto, ao contrário do que ocorre nas hipóteses onde é utilizado, a exemplo dos crimes de constrangimento ilegal e estupro, o constrangimento, aqui, não é exercido com o emprego de violência ou grave ameaça, pois se assim ocorresse, estar-se-ia tratando precisamente do "estupro", dada a finalidade sexual do agente.
Autores afirmam que o assédio moral é gênero do qual o assédio sexual é espécie. O assédio moral é perceptível no campo laboral, porém não passível de sanção penal, figura como o conjunto de atitudes capazes de proporcionar desconforto àqueles aos quais os comentários são dirigidos. Já o assédio sexual também é capaz de causar tal incômodo, a diferença é o teor do constrangimento que, no caso do assédio sexual objetiva atentar contra a dignidade sexual da vítima e a consumação do crime ocorre no momento do constrangimento, sendo dispensável a efetiva obtenção de vantagem ou favorecimento sexual.
O crime do assédio sexual é um delito pluriofensivo, pois atinge a dignidade sexual, a liberdade de exercício do trabalho e do direito de não ser discriminado.
É essencial indicar que o assédio sexual possui duas modalidades, a verbal e a corporal ou física, modalidades cujas significações Valdir Sznick prontificou-se a realizar:
Verbal - é o assédio que ocorre mediante palavras, expressões verbais como: solicitações (de maneira clara ou velada), insinuações, palavras dúbias ou de duplo sentido, alusões grosseiras ou humilhantes, blagues sexuais, perguntas íntimas ou sexuais indiscretas, referências sobre a vida privada do empregado, excesso nas palavras empregadas, abuso verbal, incluem-se, ainda, os simples gestos (mesmo imorais) nessa modalidade. (...) Assédio corporal ou físico - vai desde simples avanços, toques em lugares impudicos ("passar a mão"), beijos, esfregadelas (...). Não chega a agressão direta (que então entraremos na esfera do estupro), obrigar a vítima a passar a mão em partes pudendas do assediador, colocar à força a mão da vítima sobre as mesmas. [SZNICK, Valdir. Assédio sexual e crimes sexuais violentos.1.ed. São Paulo: Ícone, 2001, p. 36.]
No âmbito doutrinário penal, onde se discute a liberdade de ir e vir do agressor, existem de constantes discussões sobre a relevância que as declarações do ofendido possuem no convencimento do juiz, mas, atualmente, pode-se dizer que a parcela majoritária de autores entende que as assertivas da vítima podem ser consideradas como fonte de prova. No caso do processo do trabalho, a palavra da vítima é fator a justificar a análise da prova dos autos, com vista a verificar de forma contundente a impossibilidade do assédio ter ocorrido, da sua não ocorrência e não o inverso, como pretende a reclamada nestes autos.
Nas hipóteses de crimes contra a dignidade sexual, os quais, cometidos na clandestinidade, não apresentam testemunhas, a palavra da vítima tem especial valor. É que a palavra da vítima possui peso considerável na valoração das provas dos autos diante da dificuldade de produzir outras provas. O depoimento pessoal da autora, no caso dos autos, é muito rico em detalhes e que são extraídos quando da conexão com outros elementos e provas existentes nos autos, como as conversas que eram feitas, quando trabalhando como terceirizada.
A jurisprudência pátria, consolidada e pacificada pelo Superior Tribunal de Justiça (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Ag no Resp. n. 547187. Relator. Ministro Rogério Schietti Cruz. Disponível em: https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=MON&sequencial=48224920&nu m_registro=201401777183&data=20150603&formato=PDF - acesso em 23/08/2021), atribui relevância especial as declarações do ofendido nos crimes sexuais, independente do contexto da violência domestica e familiar, fundamentado na clandestinidade propria dos crimes deste jaez, que implica em um conjunto de provas limitado. A palavra da vitima, desde que firme, segura, coerente, verossímil e harmônica com os demais elementos constantes do processo, constitui prova do delito, devendo prevalecer sobre a do acusado. TOURINHO FILHO (Processo penal. 3. v. 35. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2013, p.336) afirma que "naqueles delitos clandestinos qui clam comittit solent - que se cometem longe dos olhares de testemunhas -, a palavra da vitima é de valor extraordinário".
O artigo 8 da CLT, nos ensina que o direito comum (civil e penal) são fontes subsidiárias do direito do trabalho, por isto é importante buscar os ensinamentos em área que também trabalha com o assédio sexual. Veja-se que a configuração do crime do assédio, pode levar o ofensor ser privado de sua liberdade, o que demonstra que, hodiernamente, a consideração da palavra da vítima está em outro patamar, face as normas de direitos humanos que vigem em nosso País, inclusive a denominada Lei Maria da Penha.
Por outro lado, o direito processual civil é fonte subsidiária ao processo do trabalho e o art. 375 do CPC/2015 prevê:
Art. 375. O juiz aplicará as regras de experiência comum subministradas pela observação do que ordinariamente acontece e, ainda, as regras de experiência técnica, ressalvado, quanto a estas, o exame pericial.
Portanto, utilizando-se da "máxima de experiência" é necessário realizar o árduo exercício de observação e sensibilidade, de modo a captar a verdadeira essência das declarações proferidas pela vitima, sem deixar de considerar até que ponto o interesse na causa pode interferir no conteúdo das suas declarações.
Assim, a análise da prova por meio da "máxima experiência" pode ser compreendida como a analise critica das provas, em face do seu contexto objetivo, mas também do seu "interior": do respectivo subjetivismo, das suas entrelinhas, das "informações ocultas", das referências, da compreensão, da representação e do significado do fato; enfim, daquelas circunstâncias que ele, como ser humano, consegue abstrair daquilo que não é claro nem aparente, que não está escrito, mas sabe existir, e pode fundamentá-lo.
Assim, na hipótese dos autos, diante da gravidade e peculiaridade das questões fáticas que envolvem o assédio sexual, bem como seus desdobramentos na esfera trabalhista, entendo que o conjunto probatório é suficiente para comprovar as alegações iniciais de que a autora foi assediada pelo seu superior hierárquico Ricardo, restando, portanto, o dever de indenizar, uma vez comprovado o ato ilícito, o dano na esfera moral da autora e o nexo causal.
Quanto ao arbitramento da indenização decorrente do assédio sexual, esse deve ser equitativo e atender ao caráter compensatório, pedagógico e preventivo, que faz parte da indenização ocorrida em face de danos morais, cujo objetivo é punir o infrator e compensar a vítima pelo sofrimento que lhe foi causado, atendendo, dessa forma, à sua dupla finalidade: a justa indenização do ofendido e o caráter pedagógico em relação ao ofensor.
Frise-se que, nos termos dos artigos 944 e seguintes do Código Civil, o juiz tem liberdade para fixar a indenização, devendo para tanto avaliar a extensão do dano e a capacidade econômica das partes.
Logo, não se admite que a indenização seja fixada em valor tão elevado que importe enriquecimento sem causa, nem tão ínfimo que não seja capaz de diminuir a dor do empregado, nem sirva de intimidação para a ré.
Por essa razão, a situação econômica das partes deve ser considerada, especialmente para que a penalidade tenha efeito prático e repercussão na política administrativa patronal, levando-se em conta que, ainda que a vítima tenha suportado bem a ofensa, permanece a necessidade de condenação, pois a indenização pelo dano moral tem também uma finalidade pedagógica, já que demonstra para o infrator e a sociedade a punição exemplar para aquele que desrespeitou as regras básicas da convivência humana, notadamente na comunidade de trabalho, onde outros obreiros possam estar envolvidos na mesma situação fática.
Friso que não é o caso de se aplicar ao caso concreto a adoção dos parâmetros fixados no art. 223-G, §1º/CLT, já que a constitucionalidade das alterações promovidas pela referida Lei, em relação à tarifação das indenizações, foi enfrentada pelo Plenário do TRT/3ª Região, processo nº 0011521-69.2019.5.03.0000 (ARGI), que declarou a inconstitucionalidade do disposto nos §§1º a 3º do art. 223-G da CLT, acrescentados pela Lei nº 13.467/17. O acórdão recebeu a seguinte ementa:
INCIDENTE DE ARGUIÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE. ART. 223-G, CAPUT E §§ 1ª a 3º, DA CLT, ACRESCENTADO PELA LEI Nº 13.467/17. TABELAMENTO. ARTS. 1º, INCISO III, E 5º, CAPUT E INCISOS V E X, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. DIREITOS FUNDAMENTAIS À REPARAÇÃO INTEGRAL E À ISONOMIA. São inconstitucionais os §§ 1º a 3º do art. 223-G da CLT, com redação dada pela Lei nº 13.467/17, pois instituíram o tabelamento das indenizações por danos morais com valores máximos a partir do salário recebido pela vítima, o que constitui violação do princípio basilar da dignidade da pessoa humana e aos direitos fundamentais à reparação integral dos danos extrapatrimoniais e à isonomia, previstos nos arts. 1º, III, e 5º, caput e incisos V e X, da Constituição da República.
Pelo exposto , considerando tais critérios, nego provimento ao recurso da reclamada e confiro parcial provimento ao apelo da reclamante para majorar a indenização por danos morais para R$50.000,00 (cinquenta mil reais), tal como postulado pela reclamante, por ser mais consentânea à gravidade da conduta empresária e o dano imposto à obreira .
O valor da condenação, relativamente à indenização por danos morais, encontra-se corrigido até a data de publicação deste acórdão, a partir de quando sofrerá incidência de correção monetária, pela taxa SELIC (que engloba correção monetária e juros), conforme definido pelo STF no julgamento das ADCs 58 e 59 MC/DF.
A Reclamada, em suas razões recursais, pugna pela reforma do acórdão recorrido.
Sem razão, contudo.
Do cotejo entre as razões de decidir adotadas pelo Tribunal Regional e as alegações constantes do recurso de revista interposto, evidenciam-se fundamentos obstativos do seu conhecimento.
A conquista e a afirmação da dignidade da pessoa humana não mais podem se restringir à sua liberdade e intangibilidade física e psíquica, envolvendo, naturalmente, também a conquista e afirmação de sua individualidade no meio econômico e social, com repercussões positivas conexas no plano cultural - o que se faz, de maneira geral, considerado o conjunto mais amplo e diversificado das pessoas, mediante o trabalho e, particularmente, o emprego.
O direito à indenização por dano moral encontra amparo no art. 5º, V e X, da Constituição da República e no art. 186 do CCB/2002, bem como nos princípios basilares da nova ordem constitucional, mormente naqueles que dizem respeito à proteção da dignidade humana, da inviolabilidade (física e psíquica) do direito à vida, do bem-estar individual (e social), da segurança física e psíquica do indivíduo, além da valorização do trabalho humano.
O patrimônio moral da pessoa humana envolve todos esses bens imateriais, consubstanciados, pela Constituição, em princípios fundamentais. Afrontado esse patrimônio moral, em seu conjunto ou em parte relevante, cabe a indenização por dano moral, deflagrada pela Constituição de 1988.
Tratando-se de assédio sexual no trabalho , retratado por ações reiteradas de índole sexual ou por grave ação dessa natureza, praticadas por pessoa que integra a organização ou quadros da empresa contra subordinado ou colega, desponta ainda mais relevante a responsabilização pela afronta moral sofrida, porque abala sobremaneira e por longo período a autoestima, honra, vida privada e imagem da vítima, denotando também gestão empresarial desrespeitosa e descuidada em aspecto de alta relevância, segundo a Constituição da República (respeito à dignidade da pessoa humana; respeito à mulher trabalhadora).
Registre-se que a diferença de tratamento de gênero ainda é uma lamentável realidade no Brasil, que gera elevado nível de tolerância a certos tipos de violência contra a mulher, caso do assédio sexual .
Nesse sentido, a relação laboral, em face da assimetria de poder a ela inerente, mostra-se, infelizmente, como campo fértil à repercussão nociva da desigualdade estrutural de gênero. Diante disso, é dever do Poder Judiciário enfrentar esse problema grave da sociedade brasileira, buscando conferir efetividade ao princípio da igualdade substantiva previsto na Constituição e nos tratados internacionais dos quais o Brasil é parte em matéria de direitos humanos, a fim de evitar a continuidade das desigualdades e opressões históricas decorrentes da influência do machismo, do sexismo, do racismo e outras práticas preconceituosas, eliminando todas as formas de discriminação, em especial contra a mulher.
Visando esse objetivo, o Conselho Nacional de Justiça editou a Recomendação 128, publicada em 15/2/022, que aconselha a magistratura brasileira a adotar o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero , nos casos que envolvem, entre outros, situações de assédio sexual.
Eis o teor da referida norma:
O PRESIDENTE DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ), no uso de suas atribuições legais e regimentais;
CONSIDERANDO que a igualdade de gênero é um dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas, à qual se comprometeram o Supremo Tribunal Federal e o Conselho Nacional de Justiça;
CONSIDERANDO que as Recomendações Gerais nº 33 e 35 do Comitê para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW) orienta os Estados Partes sobre, respectivamente, o acesso das mulheres à justiça e a violência contra as mulheres com base no gênero;
CONSIDERANDO que a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher ("Convenção de Belém do Pará"), promulgada pelo Decreto nº 1.973/1996, determina aos Estados Partes que ajam com o devido zelo para prevenir, investigar e punir a violência contra a mulher, bem como incorporem na sua legislação interna normas penais, processuais e administrativas para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher (art. 7º , "b" e "c");
CONSIDERANDO as atribuições da Unidade de Monitoramento e Fiscalização das Decisões e Deliberações da Corte Interamericana de Direitos Humanos do Conselho Nacional de Justiça, instituída por meio da Resolução CNJ nº 364/2021;
CONSIDERANDO o que dispõe a Sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos, de 07 de setembro de 2021, no Caso Márcia Barbosa de Souza e outros Vs. Brasil;
CONSIDERANDO que as Resoluções CNJ nº 254/2018 e 255/2018 instituem, respectivamente, a Política Judiciária Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres pelo Poder Judiciário e a Política Nacional de Incentivo à Participação Institucional Feminina no Poder Judiciário;
CONSIDERANDO a aprovação, pelo Grupo de Trabalho instituído por intermédio da Portaria CNJ nº 27/2021, do texto do "Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero", editado e lançado na sessão plenária de 19 de outubro de 2021;
CONSIDERANDO o deliberado pelo Plenário do CNJ no procedimento de Ato Normativo nº 0000574-81.2022.00.0000, na 344ª Sessão, realizada em 9 de fevereiro de 2022;
RESOLVE:
Art. 1º Recomendar aos órgãos do Poder Judiciário a adoção do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, aprovado pelo Grupo de Trabalho instituído por intermédio da Portaria CNJ nº 27/2021, para colaborar com a implementação das Políticas Nacionais estabelecidas pelas Resoluções CNJ nº 254/2020 e 255/2020, relativas, respectivamente, ao Enfrentamento à Violência contra as Mulheres pelo Poder Judiciário e ao Incentivo à Participação Feminina no Poder Judiciário.
Parágrafo único. O referido Protocolo encontra-se anexo a este ato normativo.
Art. 2º O Protocolo para julgamento com Perspectiva de Gênero poderá ser adotado no âmbito de todos os órgãos do Poder Judiciário brasileiro.
Art. 3º Esta Recomendação entra em vigor na data de sua publicação.
(Destacamos)
Inspirado nas Recomendações Gerais nº 33 e 35 do Comitê para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW) e na Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher ("Convenção de Belém do Pará"), ambos da ONU, o Protocolo incentiva para que os julgamentos não incorram na repetição de estereótipos e na perpetuação de tratamentos diferentes e injustos contra as mulheres .
Por oportuno, cita-se a seguinte diretriz constante em seu anexo, que bem ilustra essa direção:
(...)
Conforme referido nas seções anteriores, importante salientar que a sociedade brasileira é marcada por profundas desigualdades que impõem desvantagens sistemáticas e estruturais a determinados segmentos sociais, assim como sofre grande influência do patriarcado, que atribui às mulheres ideias, imagens sociais, preconceitos, estereótipos, posições e papéis sociais.
A criação, a interpretação e a aplicação do direito não fogem a essa influência, que atravessa toda a sociedade . Nesse contexto, em termos históricos, o direito parte de uma visão de mundo androcêntrica. Sob o argumento de que a universalidade seria suficiente para gerar normas neutras, o direito foi forjado a partir da perspectiva de um "sujeito jurídico universal e abstrato", que tem como padrão o "homem médio", ou seja, homem branco, heterossexual, adulto e de posses.
Essa visão desconsidera, no entanto, as diferenças de gênero, raça e classe, que marcam o cotidiano das pessoas e que devem influenciar as bases sobre as quais o direito é criado, interpretado e aplicado.
É dizer, a desconsideração das diferenças econômicas, culturais, sociais e de gênero das partes na relação jurídica processual reforça uma postura formalista e uma compreensão limitada e distante da realidade social, privilegiando o exercício do poder dominante em detrimento da justiça substantiva.
Nesse contexto, o patriarcado e o racismo influenciam a atuação jurisdicional. Como foi dito, magistradas e magistrados estão sujeitos, mesmo que involuntária e inconscientemente, a reproduzir os estereótipos de gênero e raça presentes na sociedade.
A partir dessas premissas, a neutralidade do direito passa a ser compreendida como um mito, porque quem opera o direito atua necessariamente sob a influência do patriarcado e do racismo; ou ainda, passa a ser reconhecida como indiferença e insensibilidade às circunstâncias do caso concreto.
Agir de forma supostamente neutra, nesse caso, acaba por desafiar o comando da imparcialidade. A aplicação de normas que perpetuam estereótipos e preconceitos, assim como a interpretação enviesada de normas supostamente neutras ou que geram impactos diferenciados entre os diversos segmentos da sociedade, acabam por reproduzir discriminação e violência, contrariando o princípio constitucional da igualdade e da não discriminação.
A ideia de que há neutralidade nos julgamentos informados pela universalidade dos sujeitos é suficiente para gerar parcialidade.
Um julgamento imparcial pressupõe, assim, uma postura ativa de desconstrução e superação dos vieses e uma busca por decisões que levem em conta as diferenças e desigualdades históricas, fundamental para eliminar todas as formas de discriminação contra a mulher .
Considerar que os estereótipos estão presentes na cultura, na sociedade, nas instituições e no próprio direito, buscando identificá-los para não se submeter à influência de vieses inconscientes no exercício da jurisdição é uma forma de se aprimorar a objetividade e, portanto, a imparcialidade no processo de tomada de decisão. Além disso, a compreensão crítica de que a pessoa julgadora ocupa uma posição social, que informa a sua visão de mundo, muitas vezes bem diversa das partes, reduz a possibilidade de se tomar uma decisão que favoreça a desigualdade e a discriminação.
O enfrentamento das várias verdades em jogo na relação processual, a identificação de estereótipos e o esforço para afastar eventuais prejulgamentos decorrentes de vieses inconscientes auxiliam, portanto, na percepção de uma realidade mais complexa e na construção da racionalidade jurídica mais próxima do ideal de justiça.
Na hipótese , observa-se que o Tribunal Regional seguiu uma linha decisória consentânea com as recomendações do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, ao manter a sentença que reconheceu o acintoso dano moral sofrido pela Reclamante, derivado de importunação maliciosa e reiterada praticada por seu superior hierárquico.
Conforme se observa no acórdão regional, o agressor habitualmente se utilizava de sua posição hierárquica (Gerente Geral da loja) para manter contato físico indesejado, com abraços não consentidos, bem como conversas inconvenientes, a exemplo de diversos convites para saírem juntos. Ele também exercia uma vigilância absolutamente inapropriada e anormal sobre o espaço de trabalho da Autora, lançando mão de seu poder de direção na rotina laboral para isolá-la de outros colegas homens e mantê-la sempre no seu campo de visão .
Com efeito, o conteúdo da prova oral, transcrito no acórdão regional, mostrou com muita clareza a ofensa emocional/psicológica sofrida pela Trabalhadora, bem como a gravidade do constrangimento causado e a conduta censurável do agressor. De outro lado, a omissão da Empregadora em garantir um meio ambiente do trabalho livre de ocorrências de tal natureza necessariamente atrai a sua responsabilização pela reparação do dano sofrido.
Por oportuno, transcreve-se o excerto pertinente do acórdão regional:
A testemunha indicada pela reclamante, Rayan Fernandes da Luz, disse que trabalhou com o Sr. Ricardo, que era gerente geral. Ele ficava no meio da loja ou na gerência, mas na maior parte do tempo no 1º andar no meio da loja. O relacionamento entre eles era "normal", só coisa de "serviço mesmo". Já presenciou conversa do Ricardo com a autora, assuntos que fugiam do contrato de trabalho. "Ele ficava chamando ela para sair", para ir em barzinho, para dar uma volta os dois, "ele pegava o braço dela, abraçava demais sem ela querer, puxava ela para perto dele". "Ele dava em cima dela mesmo", "conversinha mole", "paquerando ela". Não presenciou nos convites nenhuma troca de vantagem relacionada ao contrato de trabalho . Já presenciou o Ricardo pegando no cabelo e na cintura da autora. Ela não gostava, pedia para ele parar e se afastar, saía de perto, mesmo ela pedindo ele não parava, esses episódios eram diários e na frente de todos, no meio da loja . Não tinha para quem ela pudesse reclamar, a outra gerente era abaixo do Sr. Ricardo. O Ricardo tinha ciúmes da autora, quando ela estava conversando com outro homem, ele "sempre dava um jeito de parar a conversa", mandando a pessoa ir fazer outra coisa. O Ricardo ia muito no departamento da autora, principalmente, quando ela estava sozinha. Não trabalhava no mesmo andar da autora, mas sempre abastecia mercadorias no 1º andar, colocava as mercadorias no setor dela. Tinham muitas mulheres na loja, com as mais velhas o comportamento do Ricardo era "normal", com as mais novas "tinha um pouquinho mais de conversa", mas "assediar era só a Carol", ficava muito em cima dela, pegando nela, anunciava ela no microfone quando ela sumia do campo de visão dele. A autora já reclamou com a supervisora Edna do assédio, todo mundo via, mas ninguém nunca fez nada. O Ricardo entrou na loja por volta de 2016, a autora já estava na loja, ele era "grosso demais" com todo mundo, falava palavrão demais.
Com efeito, o conteúdo da prova oral, transcrito no acórdão regional, mostrou com muita clareza a ofensa emocional/psicológica sofrida pela Trabalhadora, bem como a gravidade do constrangimento causado.
A omissão da Empregadora em garantir um meio ambiente do trabalho livre de ocorrências de tal natureza necessariamente atrai a sua responsabilização pela reparação do dano sofrido.
Não há dúvidas de que os atos ocorridos com a Obreira atentaram contra a sua dignidade, a sua integridade psíquica e o seu bem-estar individual - bens imateriais que compõem seu patrimônio moral protegido pela Constituição -, ensejando a reparação moral, conforme autorizam os incisos V e X do art. 5º da Constituição Federal e os arts. 186 e 927, caput , do CCB/2002.
Em síntese, o Tribunal Regional, ao reconhecer o gravíssimo assédio moral/sexual praticado pelo superior hierárquico da Trabalhadora, a partir da prova oral produzida nos autos, adotou as recomendações do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, que induzem o equilíbrio de forças entre as Partes no processo judicial, considerando a hipossuficência processual da ofendida .
Afirmando a Instância Ordinária, quer pela sentença, quer pelo acórdão, a presença dos requisitos configuradores do dano moral em decorrência de assédio moral e sexual, torna-se inviável, em recurso de revista, reexaminar o conjunto probatório dos autos, por não se tratar o TST de suposta terceira instância, mas de Juízo rigorosamente extraordinário - limites da Súmula 126/TST.
Agrego, ainda, o formidável voto convergente proferido pelo Exmo. Ministro Alberto Bastos Balazeiro, integrante desta Terceira Turma, que destacou a importância e relevância da presente decisão para o desafio de elucidar o referido Protocolo como instrumento aos Magistrados para o equilíbrio processual, ante a forte e evidente assimetria e vulnerabilidade da vítima nas situações materiais que envolvem a violência de gênero:
VOTO CONVERGENTE
Sr. Presidente, cumprimentando-o pelo sempre brilhante voto apresentado, pediria a máxima vênia para acrescentar fundamentos ao julgado de vossa excelência. No entanto, tendo em vista que na sessão de julgamento do dia 10/5/2023 vossa excelência se dispôs a acrescentar a linha de fundamentação ora proposta (Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero), solicito apenas a juntada de voto convergente.
Penso que no caso concreto a análise realizada no voto condutor, assim como aquela externada pela Corte de origem, estão de acordo com a Resolução nº 492/2023 do CNJ, que torna obrigatória a adoção do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero para todo o Poder Judiciário nacional.
Em sendo assim, acredito que estamos diante de importante exemplo que nos permite colocar em evidência que esta Corte Superior Trabalhista já tem incorporado em seus julgamentos o conteúdo da Resolução nº 492/2023.
Diante disso, peço vênia para apresentar os fundamentos a seguir, os quais já tenho incorporado em processos de minha relatoria.
ADOÇÃO DO PROTOCOLO PARA JULGAMENTO COM PERSPECTIVA DE GÊNERO (CNJ). ASSÉDIO MORAL E SEXUAL. RESOLUÇÃO Nº 492/2023.
Cinge-se a controvérsia em identificar se a trabalhadora, ora agravada, foi vítima dos assédios de ordem moral e sexual no ambiente do trabalho, decorrentes de conduta praticada por seu superior hierárquico.
Tendo isso em vista, o caso deve ser analisado a partir das balizas oferecidas pela Recomendação CNJ nº 128/2022, que aconselha a magistratura brasileira a adotar o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero , nos casos que envolvem, entre outros, situações de proteção à estabilidade gravídica, tal como se verifica nas situações de assédio sexual.
A Recomendação está assim redigida:
(...)
O Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, aprovado pelo Grupo de Trabalho instituído por intermédio da Portaria CNJ nº 27/2021 parte de premissas tais como a de que a sociedade brasileira é marcada por severas desigualdades estruturais.
A partir disso, considera-se que aspectos patriarcais, racistas e classistas se incorporam aos mais diversos segmentos da sociedade. E, em razão disso, às mulheres são atribuídos diversos papeis sociais, os quais, via de regra, colocam-nas ora em condições de subalternidade, ora de desconfiança sobre suas queixas, valor social do trabalho doméstico não remunerado realizado, qualificações e outros aspectos discriminatórios- o que se verifica de maneira exacerbada para as mulheres negras. Nesse sentido, o Protocolo constata que o patriarcado e o racismo influenciam a atuação jurisdicional.
O documento elaborado pelo CNJ é importante instrumento por meio do qual se busca romper com o "silêncio dos juristas" - célebre expressão adotada pela professora Dora Lúcia de Lima Bertulio em 1989-, haja vista que reconhece a função do direito na manutenção dos privilégios das estruturas dominantes, em detrimento de uma justiça substantiva.
Veja-se, a esse propósito, trecho do Protocolo, cuja riqueza de informações torna imperiosa sua transcrição:
Conforme referido nas seções anteriores, importante salientar que a sociedade brasileira é marcada por profundas desigualdades que impõem desvantagens sistemáticas e estruturais a determinados segmentos sociais, assim como sofre grande influência do patriarcado, que atribui às mulheres ideias, imagens sociais, preconceitos, estereótipos, posições e papéis sociais.
A criação, a interpretação e a aplicação do direito não fogem a essa influência, que atravessa toda a sociedade. Nesse contexto, em termos históricos, o direito parte de uma visão de mundo androcêntrica. Sob o argumento de que a universalidade seria suficiente para gerar normas neutras, o direito foi forjado a partir da perspectiva de um "sujeito jurídico universal e abstrato", que tem como padrão o "homem médio", ou seja, homem branco, heterossexual, adulto e de posses.
Essa visão desconsidera, no entanto, as diferenças de gênero, raça e classe, que marcam o cotidiano das pessoas e que devem influenciar as bases sobre as quais o direito é criado, interpretado e aplicado.
É dizer, a desconsideração das diferenças econômicas, culturais, sociais e de gênero das partes na relação jurídica processual reforça uma postura formalista e uma compreensão limitada e distante da realidade social, privilegiando o exercício do poder dominante em detrimento da justiça substantiva.
Nesse contexto, o patriarcado e o racismo influenciam a atuação jurisdicional. Como foi dito, magistradas e magistrados estão sujeitos, mesmo que involuntária e inconscientemente, a reproduzir os estereótipos de gênero e raça presentes na sociedade.
A partir dessas premissas, a neutralidade do direito passa a ser compreendida como um mito, porque quem opera o direito atua necessariamente sob a influência do patriarcado e do racismo; ou ainda, passa a ser reconhecida como indiferença e insensibilidade às circunstâncias do caso concreto.
Agir de forma supostamente neutra, nesse caso, acaba por desafiar o comando da imparcialidade. A aplicação de normas que perpetuam estereótipos e preconceitos, assim como a interpretação enviesada de normas supostamente neutras ou que geram impactos diferenciados entre os diversos segmentos da sociedade, acabam por reproduzir discriminação e violência, contrariando o princípio constitucional da igualdade e da não discriminação.
A ideia de que há neutralidade nos julgamentos informados pela universalidade dos sujeitos é suficiente para gerar parcialidade.
Um julgamento imparcial pressupõe, assim, uma postura ativa de desconstrução e superação dos vieses e uma busca por decisões que levem em conta as diferenças e desigualdades históricas, fundamental para eliminar todas as formas de discriminação contra a mulher.
Considerar que os estereótipos estão presentes na cultura, na sociedade, nas instituições e no próprio direito, buscando identificá-los para não se submeter à influência de vieses inconscientes no exercício da jurisdição é uma forma de se aprimorar a objetividade e, portanto, a imparcialidade no processo de tomada de decisão. Além disso, a compreensão crítica de que a pessoa julgadora ocupa uma posição social, que informa a sua visão de mundo, muitas vezes bem diversa das partes, reduz a possibilidade de se tomar uma decisão que favoreça a desigualdade e a discriminação.
O enfrentamento das várias verdades em jogo na relação processual, a identificação de estereótipos e o esforço para afastar eventuais prejulgamentos decorrentes de vieses inconscientes auxiliam, portanto, na percepção de uma realidade mais complexa e na construção da racionalidade jurídica mais próxima do ideal de justiça .
(Conselho Nacional de Justiça (Brasil); Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados - Enfam, 2021. Protocolo para julgamento com perspectiva de gênero. p 35-36 Disponível em: Destacamos)
A partir das reflexões trazidas pelo Protocolo, proferir julgamentos em compasso com os princípios constitucionais da igualdade e da não discriminação requer que julgadores profiram decisões que, inclusive processualmente, levem em consideração as assimetrias de gênero, raça, classe e suas interseccionalidades, conforme os instrumentos jurídicos disponíveis no ordenamento jurídico. Só assim, então, é possível cumprir com a árdua tarefa de conferir efetividade e legitimidade aos princípios basilares do Estado Democrático de Direito.
Não se olvida que caminhar em direção ao acolhimento dessas orientações na atividade jurisdicional é desafio consistente, mas também premente.
O Tribunal Superior do Trabalho, no exercício da jurisdicional uniformizadora detém o dever constitucional de garantir a efetividade dos princípios constitucionais da não discriminação, da igualdade, da dignidade humana, assumindo o papel, na ordem jurídico-democrática trabalhista, de garantidor da proteção, do respeito e, igualmente, da promoção dos direitos humanos trabalhistas .
Nesse cenário, o Protocolo para julgamento com perspectiva de gênero não apenas acolhe conclusões de densas e sólidas pesquisas científicas realizadas no Brasil desde a década de 1960 - com relevante destaque para aquelas produzidas por Lélia Gonzáles e Helena Hirata -, como também oferece ferramentas para análise de temas que envolvem o direito à estabilidade da gestante contratada por prazo determinado, matéria que, em razão da lacuna legislativa específica sobre o tema, requer a utilização das diversas fontes do direito a fim de prestar a adequada prestação jurisdicional.
Portanto, a análise do presente caso concreto adota as recomendações do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, ao concluir pela impossibilidade de reforma do acórdão regional que identificou no superior hierárquico da trabalhadora condutas assediosas de cunho moral e sexual.
Em vista do exposto, Senhor Presidente, reiterando o costumeiro brilhantismo do voto de sua Excelência, CONVIRJO com o voto condutor, mediante os acréscimos de fundamentação acima.
Ultrapassada a questão da configuração do dano moral, quanto ao valor arbitrado , registre-se que não há na legislação pátria delineamento do quantum a ser fixado a título de dano moral. Caberá ao juiz fixá-lo, equitativamente, sem se afastar da máxima cautela e sopesando todo o conjunto probatório constante dos autos.
A lacuna legislativa na seara laboral quanto aos critérios para fixação leva o julgador a lançar mão do princípio da razoabilidade, cujo corolário é o princípio da proporcionalidade, pelo qual se estabelece a relação de equivalência entre a gravidade da lesão e o valor monetário da indenização imposta, de modo que possa propiciar a certeza de que o ato ofensor não fique impune e servir de desestímulo a práticas inadequadas aos parâmetros da lei.
De todo modo, é oportuno consignar que a jurisprudência desta Corte vem se direcionando no sentido de rever o valor fixado nas instâncias ordinárias a título de indenização apenas para reprimir valores estratosféricos (ou excessivamente módicos).
No caso em exame , considerando alguns elementos dos autos, tais como a diversidade de condutas imputadas ao preposto da empregadora (assédio de natureza sexual, de forma reiterada e notória), o dano, o grau de culpa do ofensor, a condição econômica das Partes, além do não enriquecimento indevido da Obreira e do caráter pedagógico da medida, entende-se que o montante arbitrado pelo Tribunal Regional (R$ 50.000,00) mostra-se em conformidade com o padrão médio estabelecido por esta Corte em casos análogos, razão pela qual se impõe a sua manutenção .
Ressalte-se que as vias recursais extraordinárias para os tribunais superiores (STF, STJ, TST) não traduzem terceiro grau de jurisdição; existem para assegurar a imperatividade da ordem jurídica constitucional e federal, visando à uniformização jurisprudencial na Federação. Por isso seu acesso é notoriamente restrito, não permitindo cognição ampla.
Pelo exposto, NEGO PROVIMENTO ao agravo de instrumento.
ISTO POSTO
ACORDAM os Ministros da Terceira Turma do Tribunal Superior do Trabalho, à unanimidade, negar provimento ao agravo de instrumento.
Brasília, 10 de maio de 2023.
Firmado por assinatura digital (MP 2.200-2/2001)
Mauricio Godinho Delgado
Ministro Relator