4ª TURMA
A C Ó R D Ã O
IGM/jt/ks/as
INCORPORAÇÃO DE GRATIFICAÇÃO DE FUNÇÃO EXERCIDA POR MAIS DE 10 ANOS – SÚMULA 372, I, DO TST FRENTE AO ART. 468, § 2º, DA CLT – TRANSCENDÊNCIA JURÍDICA DA CAUSA – INEXISTÊNCIA DE DIREITO ADQUIRIDO – RECURSO DESPROVIDO.
1. Constituem critérios de transcendência da causa, para efeito de admissão de recurso de revista para o TST, a novidade da questão (transcendência jurídica), o desrespeito à jurisprudência sumulada do TST (transcendência política) ou a direito social constitucionalmente assegurado (transcendência social), bem como o elevado valor da causa (transcendência econômica), nos termos do art. 896-A, § 1º, da CLT.
2. No caso sub judice , a Corte de origem negou provimento ao recurso ordinário do Reclamante por considerar que, para configuração do disposto na Súmula 372 do TST, deve-se levar em conta apenas o tempo do exercício de função gratificada pelo empregado. De acordo com o Regional, não se confundem o exercício de cargo em comissão e o de função gratificada, não se devendo levar em consideração o tempo ocupado em cargo em comissão para efeito da composição dos 10 anos exigido para incorporação da gratificação de função.
3. A bem da verdade, para fins de incorporação dos valores recebidos ao longo dos anos de exercício de cargo provisório nos termos da Súmula 372 do TST, a jurisprudência desta Corte Superior não faz distinção entre o exercício de cargo em comissão e o de função gratificada, entre empregado de empresa privada e empregado público, tampouco exige que o trabalhador haja percebido a mesma gratificação de função de forma ininterrupta.
4. Contudo, independentemente da possibilidade de contagem do tempo ocupado em cargo em comissão para efeito da composição dos 10 anos exigidos para incorporação da gratificação de função, deve-se manter o dispositivo do acórdão regional por fundamentos distintos.
5. Com efeito, a discussão sobre o direito adquirido à incorporação da gratificação de função percebida por mais de 10 anos, quando revertido o empregado ao cargo efetivo, contemplada pela Súmula 372, I, do TST e disciplinada especificamente de modo diverso pelo art. 468, § 2º, da CLT, acrescido pela Lei 13.467/17, da Reforma Trabalhista, é nova nesta Turma e de relevância jurídica para ser por ela deslindada.
6. O inciso I da Súmula 372 do TST tem como leading case o precedente do processo E-RR-01944/1989 (Red. Min. Orlando Teixeira da Costa, DJ 12/02/93), em que se elencaram expressamente 4 princípios que embasariam o deferimento da pretensão incorporativa: a) princípio da habitualidade; b) princípio da irredutibilidade salarial; c) princípio da analogia com direito reconhecido aos servidores públicos; d) princípio da continuidade da jurisprudência. Nele se chegou a afirmar que " o legislador, dispondo sobre a espécie (art. 468, parágrafo único da CLT), esqueceu-se de explicitar se a reversão ao cargo efetivo, quando o trabalhador deixar o exercício de função de confiança, importa na perda da gratificação respectiva, mesmo tendo prestado relevantes serviços ao empregador, naquela situação, por longo tempo ".
7. Verifica-se, pela ratio decidendi do precedente que embasou o inciso I da Súmula 372, que o TST, em vez de reconhecer na lacuna da lei o silêncio eloquente do legislador, que não abriu exceções à regra, inovou no ordenamento jurídico, criando vantagem trabalhista não prevista em lei, incorrendo em manifesto ativismo judiciário e voluntarismo jurídico, mormente por estabelecer parâmetros discricionários quanto ao tempo de percepção (10 anos) e condições de manutenção (não reversão por justa causa) da gratificação. Louvou-se, para tanto, na regra do art. 62, § 2º, da Lei 8.112/90, da incorporação de quintos pelos servidores públicos da União, revogado desde 1997, o que retiraria inclusive a base analógica da jurisprudência do TST.
8. A Lei 13.467/17, levando em conta os excessos protecionistas da jurisprudência trabalhista, veio a disciplinar matérias tratadas em verbetes sumulados do TST, mas fazendo-o em termos mais modestos, a par de estabelecer regras hermenêuticas na aplicação do direito, vedando explicitamente a redução ou criação de direitos por súmula (Art. 8º, § 2º, da CLT).
9. No caso do art. 468, § 2º, da CLT, a Reforma Trabalhista explicitou que a reversão ao cargo efetivo não dá ao trabalhador comissionado o direito à manutenção da gratificação de função, independentemente do tempo em que a tenha recebido.
10. Como a base da incorporação da gratificação de função, antes da reforma trabalhista de 2017, era apenas jurisprudencial, com súmula criando direito sem base legal, não há que se falar em direito adquirido frente à Lei 13.467/17, uma vez que, já na definição de Gabba sobre direito adquirido, este se caracteriza como um conflito de direito intertemporal, entre lei antiga e lei nova ("fato idôneo a produzi-lo, em virtude da lei do tempo no qual o fato se consumou") e não entre a lei nova e fonte inidônea para criar direito novo.
11. Nesses termos, inexistindo direito adquirido à incorporação da gratificação de função, ainda que exercida por mais de 10 anos, frente à norma expressa do art. 468, § 2º, da CLT, não se verifica violação do art. 7º, VI, da CF, tampouco se justifica a alegada contrariedade à Súmula 372, I, do TST. Mantém-se, pois, o acórdão impugnado, ainda que por fundamentos diversos.
Recurso de revista do qual não se conhece.
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Recurso de Revista n° TST-RR-11911-08.2017.5.15.0022 , em que é Recorrente ELIZEU DA MATTA FUNES e Recorrido MUNICÍPIO DE MOGI MIRIM .
R E L A T Ó R I O
O TRT da 15ª Região , por sua 5ª Turma, negou provimento ao recurso ordinário do Reclamante, mantendo a sentença que julgou improcedente o pedido de incorporação da gratificação de função suprimida após percepção por mais de 10 anos (págs. 731-734).
Inconformado, o Reclamante interpõe o presente recurso de revista , calcado em alegação de violação do art. 7º, VI, da CF e em contrariedade à Súmula 372, I, do TST (págs. 746-762).
Admitido o apelo por possível contrariedade à Súmula 372, I, do TST (pág. 780), foi devidamente contra-arrazoado (págs. 788-805), tendo o Ministério Público do Trabalho se manifestado pela desnecessidade de emissão de parecer circunstanciado (págs. 811-812).
É o relatório.
V O T O
I) CONHECIMENTO
1) PRESSUPOSTOS EXTRÍNSECOS
O recurso atende aos pressupostos extrínsecos da adequação, tempestividade, e da regularidade de representação, sendo dispensado o preparo . Dessa forma, passo à análise da transcendência e dos pressupostos intrínsecos de admissibilidade.
2) CRITÉRIO DE TRANSCENDÊNCIA
Tratando-se de recurso de revista interposto contra acórdão regional publicado após a entrada em vigor da Lei 13.467/17 , tem-se que o apelo ao TST deve ser analisado à luz do critério da transcendência previsto no art. 896-A da CLT , que dispõe:
" Art. 896-A - O Tribunal Superior do Trabalho, no recurso de revista, examinará previamente se a causa oferece transcendência com relação aos reflexos gerais de natureza econômica, política, social ou jurídica.
§ 1º São indicadores de transcendência, entre outros:
I - econômica , o elevado valor da causa;
II - política , o desrespeito da instância recorrida à jurisprudência sumulada do Tribunal Superior do Trabalho ou do Supremo Tribunal Federal;
III - social , a postulação, por reclamante-Recorrente, de direito social constitucionalmente assegurado;
IV - jurídica , a existência de questão nova em torno da interpretação da legislação trabalhista" (grifos nossos).
De plano, avulta a transcendência jurídica da causa, na medida em que a questão da incorporação da gratificação de função exercida por mais de 10 anos , quando suprimida pela reversão ao cargo efetivo, assegurada por força da Súmula 372, I, do TST , está sendo revisitada à luz do § 2º acrescido ao art. 468 da CLT pela Reforma Trabalhista promovida pela Lei 13.467/17 , que deixou clara a inexistência do direito.
Assim, reconheço a transcendência jurídica da questão, nos termos do art. 896-A, § 1º, IV, da CLT, dada a novidade da questão trazida à apreciação desta Turma no recurso de revista.
3) PRESSUPOSTOS INTRÍNSECOS
Em suas razões de revista, o Reclamante sustenta, em síntese, que fora revertido sem justo motivo ao seu cargo de origem com retirada da gratificação de função percebida por mais de por dez. A revista veio calcada em alegação de violação do art. 7º, VI, da CF e em contrariedade à Súmula 372, I, do TST (págs. 746-762).
O TRT fundamentou o indeferimento do pleito obreiro nos seguintes argumentos:
"Restou comprovado que o Reclamante exerceu cargo em comissão entre os períodos de dezembro de 2005 a janeiro de 2009, e função gratificada entre fevereiro de 2009 a agosto de 2016 .
O cargo em comissão, de natureza transitória, de livre nomeação e exoneração, nos termos do art. 37, II, da CF, não se confunde com a função gratificada, não sendo aplicável o princípio da estabilidade financeira .
Diferente do que sustenta o Autor em razões recursais, o caso em exame não se amolda ao disposto na Súmula 372 do C. TST vez que o empregado não exerceu função gratificada por mais de 10 anos, requisito insuperável para fins de incorporação da gratificação.
Nesse sentido, a ementa proferida pela 8ª Turma do C.
TST:
[...]
Nego provimento." (págs. 733-734, grifos nossos).
Como se percebe, a Corte de origem negou provimento ao recurso ordinário do Reclamante por considerar que, para configuração do disposto na Súmula 372 do TST , deve-se levar em conta apenas o tempo do exercício de função gratificada pelo empregado. De acordo com o Regional, não se confundem o exercício de cargo em comissão e o de função gratificada, não se devendo levar em consideração o tempo ocupado em cargo em comissão para efeito da composição dos 10 anos exigido para incorporação da gratificação de função.
A bem da verdade, para fins de incorporação dos valores recebidos ao longo dos anos de exercício de cargo provisório nos termos da Súmula 372 do TST , a jurisprudência desta Corte Superior não faz distinção entre o exercício de cargo em comissão e o de função gratificada, entre empregado de empresa privada e empregado público, tampouco exige que o trabalhador haja percebido a mesma gratificação de função de forma ininterrupta. Nesse sentido, destacam-se os seguintes precedentes: TST-E-RR-124740-57.2003.5.01.0071, Rel. Min. Lelio Bentes Corrêa , SBDI-1, DEJT de 18/05/12; RR-2630-35.2013.5.01.0482, Rel. Min. Hugo Carlos Scheuermann , 1ª Turma, DEJT de28/04/17; RR-10090-58.2016.5.15.0036, Rel. Min. Alexandre de Souza Agra Belmonte , 3ª Turma, DEJT 24/05/19; RR-11746-69.2016.5.03.0073, Rel. Min. Mauricio Godinho Delgado , 3ª Turma, DEJT 21/06/19; RR-583-31.2011.5.09.0678, Rel. Min. Maria de Assis Calsing , 4ª Turma, DEJT de 10/08/12; RR-10118-34.2017.5.15.0022, Rel. Min. Dora Maria da Costa , 8ª Turma, DEJT de 05/06/20.
Contudo, independentemente da possibilidade de contagem do tempo ocupado em cargo em comissão para efeito da composição dos 10 anos exigidos para incorporação da gratificação de função, deve-se manter o dispositivo do acórdão regional por fundamentos distintos , conforme se passa a demonstrar.
A questão referente à possibilidade ou não de incorporação da gratificação de função ocupada por mais de 10 anos e suprimida pela empresa, quando da reversão do empregado ao cargo efetivo, demanda inevitavelmente a análise do princípio da legalidade no âmbito das relações de trabalho.
Ora, sem base em norma legal específica , mas apenas invocando o princípio constitucional da irredutibilidade salarial , insculpido no inciso VI do art. 7º da CF , que, por sua vez, é passível de flexibilização, o TST editou a Súmula 372 , cujo inciso I assim dispõe:
" GRATIFICAÇÃO DE FUNÇÃO. SUPRESSÃO OU REDUÇÃO. LIMITES (conversão das Orientações Jurisprudenciais 45 e 303 da SBDI-1) - Res. 129/2005, DJ 20, 22 e 25.04.2005
I - Percebida a gratificação de função por dez ou mais anos pelo empregado, se o empregador, sem justo motivo, revertê-lo a seu cargo efetivo, não poderá retirar-lhe a gratificação tendo em vista o princípio da estabilidade financeira (ex-OJ nº 45 da SBDI-1 - inserida em 25.11.1996).
II - Mantido o empregado no exercício da função comissionada, não pode o empregador reduzir o valor da gratificação (ex-OJ nº 303 da SBDI-1 - DJ 11.08.2003)" (grifos nossos).
Antes da reforma trabalhista de 2017 , o art. 468 da CLT , que alberga o princípio da inalterabilidade contratual , de modo a impedir a alteração contratual unilateral e prejudicial ao empregado, já admitia a exceção da reversão ao cargo efetivo , naturalmente com a perda da gratificação de função, nos seguintes termos:
" Art. 468 . Nos contratos individuais de trabalho só é lícita a alteração das respectivas condições por mútuo consentimento, e ainda assim desde que não resultem, direta ou indiretamente, prejuízos ao empregado, sob pena de nulidade da cláusula infringente desta garantia.
Parágrafo único. Não se considera alteração unilateral a determinação do empregador para que o respectivo empregado reverta ao cargo efetivo, anteriormente ocupado, deixando o exercício de função de confiança" (grifos nossos).
Tal dispositivo constava da redação original da CLT , desde 1943 , sendo que apenas em 1996 , após a Constituição de 1988 elencar como direito trabalhista o da irredutibilidade salarial , é que o TST veio a editar orientação jurisprudencial e limitar a norma contida no parágrafo único do art. 468 da CLT , admitindo a reversão ao cargo efetivo, mas vedando a perda da gratificação de função.
O leading case que encabeça os precedentes fundantes do inciso I da Súmula 372 do TST , da lavra do saudoso Min. Orlando Teixeira da Costa , elencava as seguintes razões para assegurar a manutenção da gratificação, mesmo em face da reversão ao cargo efetivo:
"Amparam essa compreensão, vários fundamentos importantes. Primeiro - O que se ampara no princípio da habitualidade . Numerosos são os enunciados que adotam o princípio da habitualidade como gerador de direitos, no que pertine a horas extraordinárias (Verbetes de números 24, 45, 94, 115, 151, 172). Segundo - O princípio da irredutibilidade salarial , outrora reconhecido apenas pela lei ordinária, mas atualmente consagrado pela Carta Magna vigente (art. 7º, inciso VI). É que os hábitos reiterados de consumo não podem ser suprimidos de um momento para o outro. A destituição da função (sanção) poderia autorizar essa supressão. Quando, entretanto, a gratificação é suprimida por motivos outros que não decorrem da culpa do empregado, não pode ele ser apenado com a redução do seu ganho e, consequentemente, ver reduzido injustificadamente o seu poder aquisitivo. Terceiro - O princípio da analogia , cuja aplicação é autorizada pelo art. 8º da CLT. Os servidores públicos, que são trabalhadores como os empregados das empresas privadas, tiveram reconhecido pela legislação ordinária (Lei nº 6.732/79 e hoje artigo 62, § 2º da Lei nº 8.112/90) o direito de incorporação da gratificação pelo exercício de função de Direção, Chefia ou Assessoramento. Nada demais, pois, que se reconheça, também, esse direito, aos empregados das empresas privadas, quando exerceram, por longo tempo, gozando da confiança do empregador e sem nunca a terem perdido, função de confiança, mormente quando o legislador, dispondo sobre a espécie (art. 468, parágrafo único da CLT), esqueceu-se de explicitar se a reversão ao cargo efetivo, quando o trabalhador deixar o exercício de função de confiança, importa na perda da gratificação respectiva, mesmo tendo prestado relevantes serviços ao empregador, naquela situação, por longo tempo . Quarto - O princípio da constância da jurisprudência , expresso nos acórdãos que a seguir enumeraremos, representativos de mais de uma década de decisões: Ac 1ª T.-2742/77, referente ao processo nº TST-RR-1237/77, Relator Ministro Hildebrando Bisaglia; Ac. 1ª T.-1810/82, referente ao processo nº TST-RR-922/81, Relator Ministro Coqueijo Costa; Ac. 1ª T. - 915/83, referente ao processo TST-RR-2.616/82, Relator Ministro Ildélio Martins; Ac. 3ª T. - 2327/84, referente ao processo TST-RR-2723/83, Relator Ministro Orlando Teixeira da Costa; Ac. TP - 1762/86, referente ao processo nº TST-E-RR-1928/81 Relator Ministro Orlando Teixeira da Costa; Ac. TP - 611/87, referente ao processo nº TST-E-RR-2.648/84, Relator Ministro Coqueijo Costa; Ac. TP - 02272/87, referente ao processo nº TST-E-RR-0334/82, Relator Ministro Ranor Barbosa; Ac. TP-2289/87, referente ao processo TST-E-RR-2525/84, Relator Ministro Hermínio Mendes Cavaleiro; Ac. TP - 02340/87, referente ao processo nº TST-E-RR-7388/83, Relator Ministro Ranor Barbosa; Ac. 3ª T. - 2365/87, referente ao processo nº TST-RR-6562/86, Relator Ministro Orlando Teixeira da Costa; Ac. SDI-02459/89, referente ao processo nº TST-E-RR-1445/87.4, Relator Ministro Orlando Teixeira da Costa e Ac. 5ª T. - 1533/92, referente ao processo nº TST-RR-28.383/91.9, Relator Ministro Antônio Amaral" (ERR-01944/1989, Ac. 2155/1992 - Red. Min. Orlando Teixeira da Costa , DJ 12.02.1993 - Decisão por maioria) (grifos nossos).
Como se percebe, a Orientação Jurisprudencial do TST foi calcada basicamente em princípios, e não em normas legais, tanto que o voto condutor do Min. Orlando Costa fala expressamente em esquecimento do legislador e na necessidade de suprir a lacuna para os casos de longos anos de serviço .
Ora, o ilustre relator desse leading case não cogitou de silêncio eloquente do legislador , quando a não inclusão de exceção significa que a regra não as admite. Por outro lado, a fixação de parâmetro concreto pela jurisprudência constitui nítida invasão da esfera legislativa , como no caso do estabelecimento da incorporação da gratificação de função pelo seu exercício por mais de 10 anos . Por que não 5 anos, como constava antes no Estatuto dos Servidores Públicos Civis da União? Tal concretização de parâmetro não previsto em lei é a prova maior de se estar legislando por meio de decisão judicial, e não apenas suprindo lacuna.
Cabe destacar também que o referido precedente louvou-se na analogia como princípio hermenêutico, diante do que entendeu tratar-se de lacuna da lei , louvando-se no art. 62, § 2º, da Lei 8.112/90 , de modo a contemplar os trabalhadores celetistas com igual direito previsto para os servidores públicos da União, quando se dispunha, in verbis :
" Art. 62 . Ao servidor investido em função de direção, chefia ou assessoramento é devida uma gratificação pelo seu exercício.
(...)
§ 2º A gratificação prevista neste artigo incorpora-se à remuneração do servidor e integra o provento da aposentadoria, na proporção de 1/5 (um quinto) por ano de exercício na função de direção, chefia ou assessoramento, até o limite de 5 (cinco) quintos" (grifo nosso).
Ora, o próprio legislador ordinário , diante da falta de razoabilidade do benefício concedido aos servidores da União, fazendo com que desde o exercício de função comissionada por apenas um ano já pudesse ter incorporado 20% dela aos vencimentos, veio a cancelar a vantagem dos denominados "quintos" (substituição, nos termos da Lei 9.527/97 , dos 5 parágrafos do art. 62 pelo seu atual parágrafo único) e transformá-los em Vantagem Pessoal Nominalmente Identificada – VPNI quando já incorporados por aqueles que tivessem cumprido com os requisitos legais ao tempo da edição da nova lei (Medida Provisória 2.225-45/01).
Ou seja, desde 1997 a então Orientação Jurisprudencial 45 da SBDI-1 do TST já se encontrava sem respaldo sequer analógico , pois o direito não existia mais para os servidores públicos. E, assim sendo, mais patente se mostrava a conclusão de que a concessão do direito aos empregados celetistas decorria de nítido voluntarismo jurídico , ou seja, da vontade do juiz de que o direito fosse assegurado, mesmo sem previsão legal.
Ademais, ao tempo da edição do multicitado precedente, ainda vigia o CPC de 1973 , que previa expressamente a analogia e os princípios gerais de direito como fontes de exegese nos casos de lacuna no ordenamento jurídico, tal como explicitamente esgrimido pelo julgado, in verbis :
" Art. 126. O juiz não se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei. No julgamento da lide caber-lhe-á aplicar as normas legais; não as havendo, recorrerá à analogia , aos costumes e aos princípios gerais de direito" (grifos nossos) .
No entanto, justamente em face dos excessos do ativismo judiciário , veio o CPC de 2015 a não mais mencionar as referidas fontes, mas apenas manter, como parágrafo único, o antigo art. 127 do CPC de 1973, nos seguintes termos:
" Art. 140 . O juiz não se exime de decidir sob a alegação de lacuna ou obscuridade do ordenamento jurídico.
Parágrafo único . O juiz só decidirá por equidade nos casos previstos em lei. " (grifos nossos).
A mesma preocupação teve a Reforma Trabalhista (Lei 13. 467/17) em relação à hermenêutica jurisprudencial , de modo a coibir seus excessos , especialmente na edição de verbetes sumulados, quando dispôs:
" Art. 8º . As autoridades administrativas e a Justiça do Trabalho, na falta de disposições legais ou contratuais, decidirão, conforme o caso, pela jurisprudência, por analogia, por equidade e outros princípios e normas gerais de direito, principalmente do direito do trabalho, e, ainda, de acordo com os usos e costumes, o direito comparado, mas sempre de maneira que nenhum interesse de classe ou particular prevaleça sobre o interesse público.
(...)
§ 2º Súmulas e outros enunciados de jurisprudência editados pelo Tribunal Superior do Trabalho e pelos Tribunais Regionais do Trabalho não poderão restringir direitos legalmente previstos nem criar obrigações que não estejam previstas em lei. " (grifos nossos).
Em nossas "Reflexões com Vistas à Modernização da Legislação Trabalhista por Ocasião dos 75 Anos da Justiça do Trabalho no Brasil" , já alertávamos para o perigo do crescente ativismo judiciário que vinha tomando conta da jurisprudência de nossas Cortes Trabalhistas e especialmente do TST, na edição e revisão de súmulas , in verbis :
"Se nas origens do Direito do Trabalho está a ideia de proteção do trabalhador frente à exploração desmedida do empresário, por outro essa proteção tem um limite naquilo que é a justa retribuição dos frutos da produção entre o capital e o trabalho .
A concessão de direitos ao trabalhador , quer pela via legislativa, quer pela via judiciária, tem um limite de elasticidade , qual seja, a capacidade de assimilação de novos encargos trabalhistas pelas empresas, que não encareçam de tal modo o custo da mão-de-obra a ponto de tornar o produto não mais comercializável e a empresa não mais competitiva no mercado nacional ou internacional, fazendo com que venha a fechar suas portas.
Uma das vertentes do presente estudo será apresentar um panorama do que se tem ampliado o rol dos encargos trabalhistas apenas com base na interpretação das leis laborais, elastecendo além do razoável o patrimônio jurídico do trabalhador.
As duas principais vertentes do estudo serão ligadas à flexibilização da legislação trabalhista :
a) uma sob tutela sindical , que tem sido repetidamente desautorizada, pela anulação sistemática de cláusulas de acordos e convenções coletivas de trabalho ;
b) a outra, que tem sido amplamente utilizada pela Justiça do Trabalho, que poderíamos chamar de tutela judicial , com o elastecimento de direitos trabalhistas baseados unicamente na aplicação de princípios gerais para se criarem novas vantagens de conteúdo econômico para o trabalhador, não previstas em lei.
Ou seja, só se admite a flexibilização da legislação para ampliação de direitos trabalhistas , não para sua adequação à realidade econômica, social e tecnológica .
O que chama mais a atenção não é a concessão desta ou daquela vantagem isoladamente, prática perfeitamente assimilável, mas a tendência geral e constante na exegese que amplie sistematicamente o rol dos direitos trabalhistas, optando-se por deferir quase tudo e quase sempre o que o trabalhador venha a postular em juízo, a que título seja" ( Ives Gandra da Silva Martins Filho , in 1º Caderno de Pesquisas Trabalhistas, IDP – Lex-Magister, 2017 – Porto Alegre, págs. 17-18, grifos do original).
Após a entrada em vigor da Lei 13.467/17, era editado o 2º Caderno de Pesquisas Trabalhistas do IDP, que coordenamos com o Min. Gilmar Mendes , do STF, no qual registramos, já na apresentação , algumas das constatações subjacentes aos resultados da reforma, in verbis :
"Se o 1º Caderno teve a virtude de fornecer subsídios para a reforma trabalhista que se promoveu no Brasil em 2017, este 2º Caderno vem para analisá-la, decifrá-la e comentá-la, procurando extrair dela suas potencialidades.
(...)
Ao olhar para o processo da reforma trabalhista, como observador privilegiado, surpreso com sua amplitude, vem-me à cabeça, imediatamente, a terceira lei de Newton: a toda ação corresponde uma reação, de igual intensidade e de sentido contrário. Comparando o número de súmulas do TST que tiveram sua sinalização alterada nas duas semanas do tribunal, de 2011 e 2012, com aquelas mesmas e algumas outras que foram recolocadas na posição original pela reforma da CLT de 2017, não deixo de ver no ativismo judiciário da Justiça do Trabalho uma das principais causas da reforma laboral. Para mim, uma mera constatação. A reação foi tão forte quanto as mudanças da jurisprudência. Se houve excessos de um lado, também se verificam alguns do lado oposto." ( Ives Gandra da Silva Martins Filho , IDP-Paixão Editores – 2017 – Porto Alegre, págs. 7-8, grifos nossos de agora).
E no artigo específico que escrevemos para o referido caderno, registrávamos novamente, até em termos numéricos, o impacto da reforma no direito sumular, in verbis :
"Como se viu, a reforma representou uma reação ao ativismo judiciário da Justiça do Trabalho, em face das lacunas que havia na CLT em relação a muitos temas que careciam de disciplina legal, decorrentes de avanços tecnológicos e novas formas de contratação, a par do silêncio da legislação consolidada a respeito de todo o campo dos danos morais, utilizando-se a legislação civil. Assim, a guinada da jurisprudência trabalhista ocorrida nas denominadas "Semanas do TST" de 2011 e 2012 , com a alteração de 34 súmulas para ampliar direitos trabalhistas sem supedâneo legal, teve como reação a superação de 38 súmulas do TST com a reforma trabalhista , prevendo-se em moldes mais modestos os direitos que haviam sido conferidos originariamente pela jurisprudência" ( Ives Gandra da Silva Martins Filho , "A Reforma Trabalhista no Brasil" , in 2º Caderno de Pesquisas Trabalhistas , op. cit., pág. 16, grifos do original).
Pois bem, um dos verbetes sumulados do TST que foi tratado especificamente pela Lei 13.467/17 foi justamente a Súmula 372 , com a inclusão do § 2º ao art. 462 da CLT , com a seguinte redação:
" Art. 468. (...)
§ 1º Não se considera alteração unilateral a determinação do empregador para que o respectivo empregado reverta ao cargo efetivo, anteriormente ocupado, deixando o exercício de função de confiança.
§ 2º A alteração de que trata o § 1º deste artigo, com ou sem justo motivo, não assegura ao empregado o direito à manutenção do pagamento da gratificação correspondente, que não será incorporada, independentemente do tempo de exercício da respectiva função ." (grifos nossos).
Nesse sentido, o § 2º do art. 468 da CLT superou a Súmula 372, I, do TST , deixando claro agora que a reversão ao cargo efetivo não assegura ao empregado a manutenção da gratificação que recebia no cargo comissionado, independentemente do número de anos que o tenha exercido.
Como já mencionado, o item I da Súmula 372 do TST não conta com respaldo legal, mas apenas principiológico, da estabilidade financeira do empregado , sendo absolutamente discricionário o verbete , inclusive nos seus parâmetros, de 10 anos e de não reversão por justa causa, em nítida manifestação de ativismo judiciário , oportunamente reformado pela Lei 13.467/17.
Tal verbete sumulado só não foi cancelado até o momento em face da discussão em torno da constitucionalidade do art. 702, I, "f", da CLT (modificado justamente para evitar fenômenos como as "Semanas do TST" , de mudança de súmulas sem publicidade das sessões e sem precedentes que as respaldassem), suscitada perante o STF (ADC 62, Rel. Min. Ricardo Lewandowski ) e TST (ArgInc-696-25.2012.5.05.0463, Rel. Min. Márcio Eurico ), o qual dispõe sobre o procedimento de edição e cancelamento de súmulas do TST , nos seguintes termos:
Art. 702 . Ao Tribunal Pleno compete:
I - em única instância:
(...)
f) estabelecer ou alterar súmulas e outros enunciados de jurisprudência uniforme , pelo voto de pelo menos dois terços de seus membros, caso a mesma matéria já tenha sido decidida de forma idêntica por unanimidade em, no mínimo, dois terços das turmas em pelo menos dez sessões diferentes em cada uma delas, podendo, ainda, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de sua publicação no Diário Oficial" (grifos nossos).
Ademais, a clássica definição de direito adquirido de Gabba , ilustre jurista italiano que influenciou diretamente nosso Código Civil de 1916, e que é repetida em uníssono pela doutrina pátria, expressa-se nos seguintes termos:
"É adquirido cada direito que: a) é consequência de um fato idôneo a produzi-lo, em virtude de a lei do tempo no qual o fato se consumou , embora a ocasião de fazê-lo valer não se tenha apresentado antes da atuação de uma lei nova em torno do mesmo; e que b) nos termos da lei sob cujo império ocorre o fato do qual se origina , passou imediatamente a fazer parte do patrimônio de quem o adquiriu". ( Carlo Francesco Gabba, "Teoria della Retroattività delle Leggi ", Utet – 1891 - Torino, 3ª ed., pág. 191, grifos nossos).
Como se percebe, a questão do direito adquirido é uma questão de direito intertemporal , no sentido do confronto entre lei antiga e lei nova , pelo prisma do cumprimento dos elementos que, segundo a lei antiga, eram aptos a gerar o direito previsto na lei antiga e que serão antepostos frente à lei nova, em nome da segurança jurídica.
No caso do pretenso direito à incorporação da gratificação de função , o que se contrapõe é a lei nova frente a verbete sumulado do TST que, indevidamente, criou vantagem trabalhista sem base legal. Portanto, não há de se falar em direito adquirido .
Se, por um lado, a jurisprudência é fonte de direito , quando interpreta legitimamente o ordenamento jurídico, explicitando o que não estava claro, por outro, não cabe ao Poder Judiciário se substituir ao Legislativo , em detrimento do princípio republicano e democrático da separação dos Poderes do Estado.
Por derradeiro, também não cabe aqui se cogitar de modulação de decisão judicial que venha a cancelar expressamente súmula que conflita com a lei nova, mormente se já conflitava com o ordenamento jurídico anterior, inovando na ordem jurídica ao criar direito sem respaldo legal.
Por todas as razões aqui expostas, não se verifica violação do art. 7º, VI, da CF , tampouco se justifica a alegada contrariedade à Súmula 372, I, do TST , haja vista a inexistência de direito adquirido à incorporação da gratificação de função, ainda que exercida por mais de 10 anos, a teor dos arts. 5º, II, da CF (princípio da legalidade) e 468, § 2º, da CLT .
Mantém-se, pois, o acórdão impugnado, ainda que por fundamentos diversos .
ISTO POSTO
ACORDAM os Ministros da Quarta Turma do Tribunal Superior do Trabalho, por unanimidade, em reconhecer a transcendência jurídica da causa e não conhecer do recurso de revista interposto.
Brasília, 02 de setembro de 2020.
Firmado por assinatura digital (MP 2.200-2/2001)
IVES GANDRA DA SILVA MARTINS FILHO
Ministro Relator