A C Ó R D Ã O
(Ac. 3ª Turma)
GMALB/avrr/AB/mki
RECURSO DE REVISTA. SERVIDOR PÚBLICO. CONTRATAÇÃO TEMPORÁRIA (ART. 106 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1967, COM REDAÇÃO DA EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 1, DE 1969; ART. 37, INCISO IX, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988). ORIENTAÇÃO JURISPRUDENCIAL 205 DA SDI-1 DO TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO – CANCELAMENTO. COMPREENSÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO. 1. No julgamento do RE 573202/AM (em 21.8.2008; acórdão publicado em 5.12.2008), com o reconhecimento de repercussão geral da questão constitucional, o Supremo Tribunal Federal, em composição plena, decidiu pela incompetência da Justiça do Trabalho para os litígios instaurados “entre o Poder Público e seus servidores submetidos a regime especial disciplinado por lei local editada antes da Constituição Republicana de 1988, com fundamento no art. 106 da Constituição de 1967, na redação que lhe deu a Emenda Constitucional 1/69, ou no art. 37, IX, da Constituição de 1988” (Relator Ministro Ricardo Lewandowski). 2. Atento à interpretação constitucional assim fixada, o Tribunal Superior do Trabalho, em 23.4.2009, cancelou a Orientação Jurisprudencial nº 205 da SDI-1. 3. Em consequência, impõe-se a submissão ao norte outorgado pelo Supremo Tribunal Federal, restando necessário o reconhecimento da incompetência da Justiça do Trabalho para processar e julgar a reclamação trabalhista. Recurso de revista conhecido e provido.
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Recurso de Revista n° TST-RR-28100-04.2009.5.22.0101 , em que é Recorrente ESTADO DO PIAUÍ e Recorrido ANTÔNIO VIEIRA NETO .
O Eg. Tribunal Regional do Trabalho da 22ª Região, por meio do acórdão de fls. 75/99, rejeitou a arguição de incompetência desta Justiça Especializada para apreciar e julgar a presente reclamação trabalhista .
Recorre de revista o Reclamado, com base nas alíneas “a” e “c” do art. 896 da CLT (fls. 103/109).
Despacho de admissibilidade a fls. 111/113-v.
Sem contrarrazões (fl. 115).
Manifestou-se o D. Ministério Público do Trabalho pelo conhecimento e provimento do recurso, para declarar a incompetência da Justiça do Trabalho para processar e julgar a presente demanda (fls. 118/119).
É o relatório.
V O T O
Tempestivo o apelo (fls. 100 e 103), regular a representação (O.J. nº 52 da SBDI-1/TST) e inexigível o preparo (CLT, art. 790-A; Decreto-Lei nº 779/69, art. 1º, IV), estão preenchidos os requisitos extrínsecos de admissibilidade.
1 - SERVIDOR PÚBLICO. CONTRATAÇÃO TEMPORÁRIA (ART. 106 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1967, COM REDAÇÃO DA EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 1, DE 1969; ART. 37, INCISO IX, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988). ORIENTAÇÃO JURISPRUDENCIAL 205 DA SDI-1 DO TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO – CANCELAMENTO. COMPREENSÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO.
1.1 – CONHECIMENTO.
O Regional rejeitou a arguição de incompetência desta Justiça Especializada, pelos seguintes fundamentos (fls. 77/88):
“ Preliminar
Incompetência da Justiça do Trabalho
Trata-se de Reclamação Traba‧lhista movida por trabalhador que alega vínculo de natu‧reza celetista com o Estado do Piauí.
Tradicionalmente, diz-se que a competência do órgão jurisdicional, no que tange à ma‧téria, fixa-se em razão do pedido e da causa de pedir. Pleiteando o autor verba trabalhista típica, e suscitando fatos e fundamentos jurídicos típicos de natureza cele‧tista, resulta como conclusão lógica que a Justiça do Trabalho é a competente para inicialmente apreciar o feito, ainda que para se declarar incompetente e deter‧minar a remessa dos autos à Justiça competente.
Ocorre que esse entendimento fundamentava-se na permissibilidade de o Poder Públi‧co de contratar segundo o regime da CLT, surgida com a promulgação da EC 19 de 05/06/1998, que afastou a unicidade de regime. O Poder Público, a partir da e‧menda constitucional, encontrou no ordenamento jurídi‧co permissão para contratar pelos dois regimes, o ad‧ministrativo e o celetário, daí porque as razões de deci‧dir tinham como regra a presunção do vínculo de natu‧reza empregatícia, por ser o comum, o usual, se não comprovada a existência do vínculo de natureza estatu‧tária.
O regime geral do trabalhador, fi‧gurando ou não o Estado como o empregador, é (ou era) o celetista, até porque informal (CLT, arts. 442 e 443), enquanto a existência do vínculo estatutário, além do requisito do concurso público, sempre impôs a prova de sua efetiva implantação no direito positivo estadual (CPC, art. 337).
No entanto, nos autos da ADI MC-2135/DF, o Supremo Tribunal Federal suspendeu, em medida cautelar e com efeitos erga omnes e ex nunc , a eficácia da EC 19 quanto à possibilidade de vir o Poder Público a contratar pelo regime celetista, por vício formal no processo legislativo (ADI MC-2135/DF. Rei. Min. Ellen Gracie. Pleno. DJ 07/03/2008). Suspen‧sa a eficácia da emenda constitucional, com efeitos a contar a partir da publicação da decisão (07/03/2008), retornou a antiga redação do art. 39 da Carta Magna, impondo que o Poder Público só contratará pelo regime jurídico único, de natureza administrativa. A esta altura, já havia sido referendada pelo Plenário a liminar subs‧crita pelo Min. Nelson Jobim (ADI 3.395/DF, Rel. Min. Cézar Peluso. Pleno. DJ 10/11/2006), que afastava qualquer interpretação do art. 114, CF que incluísse na competência da Justiça do Trabalho a apreciação de causas havidas entre a Administração Pública e o ser‧vidor a ela vinculado por típica relação de ordem estatu‧tária ou de caráter jurídico-administrativo.
Com a ADI 2135/DF, o Supremo Tribunal afastou de vez a competência da Justiça do Trabalho para julgar causas trabalhistas contra o Poder Público. Em face da suspensão da eficácia da EC 19, entendeu-se que ao Poder Público, na vigência da atual Carta Magna, nunca foi dada a faculdade de contratar pelo regime celetista, mas tão-somente pelo estatutário. Se assim, a regra da fixação da competência da Justiça do Trabalho pela causa de pedir ou pelo pedido esva‧zia-se em seu sentido, porque não mais se poderia co‧gitar de contratação de trabalhador, pelo Poder Público, através de regime celetista.
Noutras e mais contundentes pa‧lavras, o STF entendeu e registrou que toda e qualquer admissão laboral empreendida pelo Poder Público há de ser considerada como de vínculo administrativo, seja permanente, seja temporário. Apenas por motivos de segurança jurídica, a liminar em ADI preserva os efeitos da lei ou do ato normativo objeto do controle de consti‧tucionalidade até o momento daquela decisão.
O novel entendimento esposado pelo STF tem merecido críticas de operadores do Direi‧to, haja vista que o regime jurídico-administrativo, mormente o da contratação temporária, não é presumível, tendo caráter essencialmente formalístico o vínculo ins‧titucional e excepcional o vínculo temporário.
Ocorre que força vinculante e‧mana da decisão do STF. Optando pelo antigo enten‧dimento, várias decisões da Justiça trabalhista no Piauí foram e têm sido alvo de Reclamações Constitucionais (CF/88, art. 102, l, "l"). Numa dessas, inclusive interpos‧ta contra decisões proferidas pelo MM. Juízo da Vara do Trabalho de Floriano, o STF determinou que mais de uma centena de processos referentes a ações ajuiza‧das por trabalhadores em desfavor do Município de Re‧generação fossem enviados à Justiça Comum, justa‧mente por entender-se que ações trabalhistas aforadas contra o Poder Público não seriam de competência des‧ta Justiça do Trabalho:
‘ (...) Após a decisão proferida na ADI n.2.135 MC, DJ de 7.3.08, em que foram suspen‧sos os efeitos da EC 19/98, não haveria como o sistema jurídi‧co-administrativo brasileiro comportar a contratação pelo regime da CLT (...) ’ (Proc. STF Reclamação n° 4786-5/PI. Rela‧tor Min. EROS 22/09/2008).
Noutra Reclamação, a de n° 5381-4/AM, o Ministro Cezar Peluso, acompanhando o relator, assim entendeu:
‘ (...) Em suma, não há possibi‧lidade, na relação jurídica entre servidor e o Poder Público, se‧ja ele permanente ou temporá‧rio, de ser regido senão pela legislação administrativa. Chame-se a isso relação esta‧tutária, jurídico administrativa, ou outro nome qualquer, o cer‧to é que não há relação contra‧tual sujeita à CLT (...) Como a Emenda 19 caiu, nós voltamos ao regime original da Constitu‧ição, que não admite relação sujeita à CLT, que é de caráter tipicamente privado, entre ser‧vidor público, seja estável ou temporário, e a Administração Pública (...) ’ (Proc. STF Recla‧mação n° 5381-5/AM. Relator Min. CARLOS 08/08/2008).
A Ministra Carmen Lúcia, nesta mesma Reclamação, também proferiu entendimento com o relator, mormente quanto aos casos de vínculo temporário:
‘(...) O Ministério Público do Trabalho entra com a ação civil pública para questionar a falta de concursos desses contrata‧dos. Ora, se a Constituição es‧tabelece que esse contrato é temporário para suprir uma necessidade, não pode haver esse questionamento, muito menos no âmbito da Justiça do Trabalho (...) ’ (Proc. STF Re‧clamação n° 5381-5/AM. Relator Min. CARLOS 08/08/2008).
Acompanhando o novel entendi‧mento adotado pelo STF, o Tribunal Superior do Traba‧lho cancelou, recentemente, o enunciado da OJ 205 da SbDI-1 do TST, segundo a qual se inscreveria na com‧petência material da Justiça do Trabalho dirimir a ação entre trabalhador e ente público se houvesse controvér‧sia acerca do vínculo empregatício, e que a simples presença de lei que disciplina a contratação por tempo determinado para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público (CF, art. 37, IX) não seria o bastante para deslocar a competência da Justiça do Trabalho, se houvesse desvirtuamento da contratação mediante a prestação de serviços em caráter perma‧nente. Ou seja, o TST placitou a tese do STF de que fi‧gurando no pólo passivo da demanda o Poder Público, não haveria que perquirir a Justiça do Trabalho a natureza ou a durabilidade do vínculo, por incompetência absoluta para apreciar a matéria.
Há, contudo, que se adequar a decisão do STF, proferida nos autos da ADI 2135/DF, ao caso concreto.
O Supremo Tribunal Federal, ao conceder a liminar em sede de ação direta de inconsti‧tucionalidade, suspendeu a eficácia da EC 19, mas conferiu efeitos ex nunc à tutela. Têm-se, assim, quatro possíveis situações jurídicas para os trabalhadores con‧tratados ou admitidos pelo Poder Público: a) aqueles admitidos sob a égide da Constituição Federal anterior (1967 c/c 1969); b) aqueles contratados entre a data da vigência da Constituição Federal atual (05/10/1988) até a data anterior à da vigência da EC 19/1998; c) os con‧tratados a partir de 05/06/1998, início da vigência da EC 19 até antes da publicação da decisão em ADI; d) e, fi‧nalmente, os contratados a partir de 07/03/2008, data da publicação do julgamento liminar da ADI 2135/DF.
Os trabalhadores enquadrados na primeira e na terceira situação - admissão anterior à CF/88 e admissão na vigência da CF/88, após a promulgação da EC 19 (a partir de 05/06/1998) – indene de dúvidas, podem ser celetistas ou estatutários, por‧que o ordenamento, nestas duas épocas, permitia o re‧gime jurídico dual, e a decisão liminar da ADI 2135 não alcança estas situações.
Também não há dúvidas quanto à quarta situação: a dos trabalhadores admitidos a partir de 07/03/2008 (data da publicação da decisão liminar da ADI 2135). Por força do efeito vinculante inerente às decisões do STF em sede de controle concentrado, não é possível admitir regime jurídico celetista entre o traba‧lhador e a Administração, após esta data, havendo que se considerar, segundo o STF, na ausência de provas quanto à lei criadora do cargo, de sua publicação, e da realização do concurso, como temporária a contratação do trabalhador.
Fica a controvérsia interpretativa quanto à segunda situação: a dos trabalhadores admiti‧dos sob o pálio da CF/88 até antes da promulgação da EC 19, época em que o art. 39 do texto constitucional instituiu o regime jurídico único. Adotando-se o enten‧dimento tradicional, poder-se-ia admitir como celetária a contratação, se não provada a inclusão do trabalhador no regime jurídico administrativo, formal e não ‧presumível, ainda que nulo o contrato por incompatibili‧dade do vínculo.
A meu entender, porém, o julga‧dor deve ser coerente: ou adota em sua inteireza a de‧cisão do STF (e, ao fazê-lo, estará adotando sua tese interpretativa), ou não a adota - e neste caso, estará albergando tese manifestamente contrária ao próprio ordenamento jurídico vigorante, posto que decisões do STF em sede de controle concentrado a ele se incorpo‧ram.
Ora, se no julgado liminar da ADI 2135 o STF entendeu que qualquer contratação com o Poder Público, a partir de 07/03/2008, há de ser vista sob a égide do regime jurídico administrativo, ainda que de natureza temporária, e jamais pelo regime celetista, porque a suspensão da eficácia da EC 19, por vício de inconstitucionalidade formal, fez retornar a antiga reda‧ção do art. 39 constitucional, há, pois, de ser conside‧rado, dentro da tese do STF, como vinculado pelo regi‧me jurídico administrativo também o trabalhador contra‧tado após a CF/88 e antes da EC 19.
Compreender de modo contrário seria adotar a tese interpretativa do STF para uns traba‧lhadores (admitidos após 07/03/2008) e não para outros (admitidos entre 05/10/1988 e 04/06/1998), inobstante o fundamento seja o mesmo: o da existência de regime jurídico único.
Restou incontroverso nos presen‧tes autos que o trabalhador foi admitido nos quadros do ente público em 17.03.2003 (fl. 03), ou seja, em período durante o qual a Administração Pública poderia admitir servidores sob a égide celetária. Tal se dá porque o STF atribuiu efeitos ex nunc à decisão cautelar proferi‧da nos autos da ADI 2135, mantendo intactos os pactos celebrados com o Poder Público no período compreen‧dido entre 05 de junho de 1998 (data da publicação da EC 19/98) a 07 de março de 2008 (data de publicação do acórdão na mencionada ADI).
Em recorte, transcrevo a ementa do julgado.
‘MEDIDA CAUTELAR EM A‧ÇÃO DIRETA DE INCONSTI‧TUCIONALIDADE. PODER CONSTITUINTE REFORMA‧DOR. PROCESSO LEGISLA‧TIVO. EMENDA CONSTITU‧CIONAL 19, DE 04.06.1998. ART. 39, CAPUT, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. SERVI‧DORES PÚBLICOS. REGIME JURÍDICO ÚNICO. PROPOS‧TA DE IMPLEMENTAÇÃO, DURANTE A ATIVIDADE CONSTITUINTE DERIVADA, DA FIGURA DO CONTRATO DE EMPREGO PÚBLICO. I‧NOVAÇÃO QUE NÃO OBTEVE A APROVAÇÃO DA MAIORIA DE TRÊS QUINTOS DOS MEMBROS DA CAMARA DOS DEPUTADOS QUANDO DA APRECIAÇÃO, EM PRIMEIRO TURNO, DO DESTAQUE PA‧RA VOTAÇÃO EM SEPARADO (DVS) N° 9. SUBSTITUIÇÃO, NA ELABORAÇÃO DA PROPOSTA LEVADA A SEGUNDO TURNO, DA REDAÇÃO ORI‧GINAL DO CAPUT DO ART. 39 PELO TEXTO INICIALMENTE PREVISTO PARA O PARÁGRAFO 2° DO MESMO DIS‧POSITIVO, NOS TERMOS DO SUBSTITUTIVO APROVADO. SUPRESSÃO, DO TEXTO CONSTITUCIONAL, DA EX‧PRESSA MENÇÃO AO SIS‧TEMA DE REGIME JURÍDICO ÚNICO DOS SERVIDORES DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. RECONHECIMENTO, PELA MAIORIA DO PLENÁRIO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDE‧RAL, DA PLAUSIBILIDADE DA ALEGAÇÃO DE VÍCIO FORMAL POR OFENSA AO ART. 60, § 2°, DA CONSTITU‧IÇÃO FEDERAL. RELEVÂN‧CIA JURÍDICA DAS DEMAIS ALEGAÇÕES DE INCONSTI‧TUCIONALIDADE FORMAL E MATERIAL REJEITADA POR UNANIMIDADE.
1. Omissis.
2. Omissis.
Pedido de medida cautelar deferido, dessa forma, quanto ao caput do art. 39 da Constituição Federal, ressalvando-se, em decorrência dos efeitos ex nunc da decisão, a subsistência, até o jul‧gamento definitivo da ação, da validade dos atos anteri‧ormente praticados com base em legislações eventualmen‧te editadas durante a vigên‧cia do dispositivo ora sus‧penso' .
Concluo pela competência da Justiça do Trabalho para processar e julgar a presente lide quanto aos pedidos relativos ao decênio compre‧endido entre 05 de junho de 1998 (data da publicação da EC 19/98) a 07 de março de 2008 (data de publica‧ção do acórdão na mencionada ADI), decretando-se a nulidade dos atos decisórios relativos ao período poste‧rior (CPC, art. 113, § 2°), com extinção do feito sem re‧solução de mérito, neste particular.”
Sustenta o Recorrente que a Corte de origem incorreu em ofensa aos arts. 37, II, 39 e 114, I, da Carta Magna. Colaciona arestos.
Segundo o art. 114, inciso I, da Constituição Federal, com a redação dada pela Emenda Constitucional 45/2008, “compete à Justiça do Trabalho processar e julgar ... as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios” . Na dicção pretérita, o dispositivo, ao disciplinar a competência da Justiça do Trabalho, aludia a “dissídios individuais entre trabalhadores e empregadores” (art. 114, “caput”) .
É ostensiva a ampliação do quadro normativo decorrente do preceito constitucional, valendo rememorar que a Lei não contém palavras inúteis e, dentre os critérios orientadores da hermenêutica jurídica, não se pode perder de vista a compreensão técnica de cada vocábulo empregado pelo legislador.
Relação de trabalho (como é da voz do atual art. 114, inciso I, da Carta Magna) não se confunde com relação de emprego (a espécie objetivada pela forma anterior). Para o eminente Ministro Maurício Godinho Delgado (“Curso de Direito do Trabalho”, São Paulo: LTr, 2003, págs. 283/284), “a primeira expressão tem caráter genérico: refere-se a todas as relações jurídicas caracterizadas por terem sua prestação essencial centrada em uma obrigação de fazer consubstanciada em labor humano”. E prossegue: “a relação de emprego, entretanto, é, do ponto de vista técnico-jurídico, apenas uma das modalidades específicas da relação de trabalho juridicamente configuradas. Corresponde a um tipo legal próprio e específico, inconfundível com as demais modalidades de relação de trabalho ora vigorantes” . A relação de emprego traduz o modelo preconizado pela Consolidação das Leis do Trabalho.
Com elegância e absoluta propriedade, Luís Roberto Barroso (“Interpretação e Aplicação da Constituição”, São Paulo: Saraiva, 2002, págs. 70/71) pede atenção “para a lição mais relevante: as normas legais têm de ser reinterpretadas em face da nova Constituição, não se lhes aplicando, automática e acriticamente, a jurisprudência forjada no regime anterior. Deve-se rejeitar uma das patologias crônicas da hermenêutica constitucional brasileira, que é a interpretação retrospectiva , pela qual se procura interpretar o texto novo de maneira a que ele não inove nada, mas, ao revés, fique tão parecido quanto possível com o antigo ” (grifei).
Não há como se negar que ao texto constitucional reeditado a jurisprudência (em geral) tem recusado a ansiada amplitude, recusando-se, mesmo no âmbito desta Corte, a competência quando se cuida de relações de trabalho em que manifestamente divisada a prestação pessoal de serviços.
A despeito do quanto posto, para o caso sob exame, não haveria necessidade de se conhecer a extensão do que se pode compreender por relação de trabalho, de vez que, para as relações de emprego, mesmo quando envolvidos entes da Administração Pública Direta ou Indireta, a teor da clara vocação constitucional, não deveria subsistir a menor dúvida quanto à competência da Justiça do Trabalho, de vez que a situação seja aquela já solidificada desde a edição do Texto Maior, em 1988.
Vindo servidor público (aqui considerados os empregados públicos) a postular o reconhecimento de relação de emprego e o deferimento de parcelas de natureza trabalhista, não se poderia negar a competência ex ratione materiae da Justiça do Trabalho (mesmo que para negar a ocorrência de contrato individual de trabalho). Por tal razão é que foi editada a Orientação Jurisprudencial nº 205 da SDI-1 desta Corte, assim redigida:
“205. COMPETÊNCIA MATERIAL. JUSTIÇA DO TRABALHO. ENTE PÚBLICO. CONTRATAÇÃO IRREGULAR. REGIME ESPECIAL. DESVIRTUAMENTO.
I - Inscreve-se na competência material da Justiça do Trabalho dirimir dissídio individual entre trabalhador e ente público se há controvérsia acerca do vínculo empregatício.
II - A simples presença de lei que disciplina a contratação por tempo determinado para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público (art. 37, inciso IX, da CF/1988) não é o bastante para deslocar a competência da Justiça do Trabalho se se alega desvirtuamento em tal contratação, mediante a prestação de serviços à Administração para atendimento de necessidade permanente e não para acudir a situação transitória e emergencial.”
O Supremo Tribunal Federal, no entanto, optou por diverso caminho. No julgamento do RE 573202/AM (em 21.8.2008; acórdão publicado em 5.12.2008), com o reconhecimento de repercussão geral da questão constitucional, a Corte, em composição plena, decidiu pela incompetência da Justiça do Trabalho para os litígios instaurados “entre o Poder Público e seus servidores submetidos a regime especial disciplinado por lei local editada antes da Constituição Republicana de 1988, com fundamento no art. 106 da Constituição de 1967, na redação que lhe deu a Emenda Constitucional 1/69, ou no art. 37, IX, da Constituição de 1988” (Relator Ministro Ricardo Lewandowski).
A este julgado seguem-se muitíssimos outros ( v.g. , Rcl. 4489/PA, Rel. p/ acórdão Min. Cármen Lúcia; Rcl. 5381/AM, Rel. Min. Carlos Britto; Rcl. 5.171-4/DF, Rel. Min. Cármen Lúcia; Rcl. 4.904-3, Rel. Min. Cármen Lúcia).
Atento à interpretação constitucional assim fixada, o Tribunal Superior do Trabalho, em 23.4.2009, cancelou o orientador jurisprudencial sob foco (Resolução 156/2009).
Com a supressão da Orientação Jurisprudencial nº 205 da SDI-1, impõe-se a submissão ao norte outorgado pelo Supremo Tribunal Federal, restando necessário o reconhecimento da incompetência da Justiça do Trabalho para processar e julgar os feitos nos quais envolvidos servidores públicos temporários, contratados sob a feição do regime a que aludem os arts. 106 da Constituição Federal de 1967, com redação da Emenda Constitucional 1/1969, e 37, IX, da Constituição Federal de 1988.
Ao decidir de modo diverso, a Egrégia Corte Regional viola o art. 114, inciso I, da Constituição Federal.
1.2 – MÉRITO.
Diante da violação do art. 114, inciso I, da Constituição Federal de 1988, dou provimento ao recurso de revista, para, reconhecendo a incompetência da Justiça do Trabalho para processar e julgar a reclamação trabalhista, declarar a nulidade de todos os atos decisórios do processo e o encaminhar à Justiça Comum do Estado do Piauí (CPC, art. 113, § 2º).
ISTO POSTO
ACORDAM os Ministros da Terceira Turma do Tribunal Superior do Trabalho, por unanimidade, conhecer do recurso de revista por violação do art. 114, inciso I, da Constituição Federal de 1988, e, no mérito, dar-lhe provimento para, reconhecendo a incompetência da Justiça do Trabalho para processar e julgar a reclamação trabalhista, declarar a nulidade de todos os atos decisórios do processo e o encaminhar à Justiça Comum do Estado do Piauí (CPC, art. 113, § 2º).
Brasília, 23 de junho de 2010.
Alberto Luiz Bresciani de Fontan Pereira
Ministro Relator