A C Ó R D Ã O

(6ª Turma)

GMACC/pas/tlo/ M

RECURSO DE REVISTA DAS RECLAMADAS SOB A ÉGIDE DA LEI 13.467/2017 . VALOR ARBITRADO A TÍTULO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. TRANSCENDÊNCIA ECONÔMICA . No caso em tela, a pretensão recursal vem alicerçada na tese de desproporcionalidade do valor da indenização por dano moral arbitrado pela Corte a quo no valor de R$ 1.000.000,00. Nesse contexto, o fato de o valor da condenação alcançar patamar elevado, sobretudo na perspectiva de pessoas físicas, mostra-se apto a configurar o requisito da transcendência econômica, nos termos do art. 896-A, § 1º, I, da CLT. Transcendência reconhecida.

RECURSO DE REVISTA DAS RECLAMADAS SOB A ÉGIDE DA LEI 13.467/2017 . VALOR ARBITRADO A TÍTULO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. A Corte Regional, soberana na análise da prova, consignou os seguintes dados fáticos: a) a autora não foi retirada de seu âmbito familiar apenas por um ato altruísta das reclamadas, apenas para propiciar um futuro melhor, como tentaram fazer crer as rés; b) se a autora tivesse sido adotada, ainda que de maneira tácita, teria tratamento ao menos semelhante ao tratamento das demais filhas, o que não ocorria; c) a reclamante pagava por seus utensílios pessoais, participava de seus recolhimentos previdenciários, participava de seu plano de saúde, comprava suas próprias roupas, produtos de beleza e higiene, entre diversos outros gastos arcados por ela própria, como demonstram as anotações de pagamento; d) a reclamante se viu privada de estudos, o que fez com que seu desenvolvimento pessoal fosse sobremaneira privado; e) a vizinha da ré conheceu a autora aos 14 ou 15 anos e desde então já era tratada como empregada da casa, sendo possível concluir que a serventia começou até antes; f) a ré empregou menor de idade sem oportunizar tempo para estudo e para o desenvolvimento psicológico; g) hoje a autora depende de faxinas nas casas dos parentes da reclamada com os quais conviveu durante sua vida, recebendo de maneira aleatória e informal; h) desde os 7 anos de idade a reclamante se viu sem convivência além da residência, sem conhecimento dos fatos além dos portões da casa, e sem perspectiva de construir um futuro estranho àquele em que foi emergida após a falsa adoção; i) o pagamento de um salário mais plano de saúde e recolhimentos previdenciários não servem para livrar o ato ilícito culposo praticado pelas rés, pois o dano pior já havia sido praticado e dificilmente poderá ser reparado - impedir o acesso à educação; j) a demandante foi privada de educação, direito de voto e, para além, de verdadeira participação na sociedade em que está precariamente inserida; k) não há controvérsia em relação aos fatos de que a reclamante foi trazida para a casa das reclamadas com 7 anos de idade (em 1987, aproximadamente) e lá ficou até 2016, quando, segundo depoimento da reclamante, em audiência, desentendeu-se com uma pessoa da família e deixou o trabalho; l) nos quase trinta anos de convivência, a reclamante permaneceu sem frequentar escolas, sem receber, ao menos em certa parte desse período, dinheiro pelos serviços que realizava, e trabalhando desde muito jovem em serviços domésticos que favoreciam as rés; m) a prova dos autos deixou patente que a prática das reclamadas era mesmo a utilização da mão de obra infantil; n) incontroverso que dos 7 aos 18 anos de idade a autora não recebeu qualquer salário; a CTPS foi anotada em 1998, quando a autora completou 18 anos e a prova documental dos autos demonstrou que de agosto de 2001 a outubro desse mesmo ano, a reclamante não recebeu nenhum valor em dinheiro, trabalhando para pagar a contribuição do INSS da empregadora e algumas outras necessidades básicas, numa espécie de truck system domiciliar, engendrado pelas reclamadas; o) a ausência do pagamento de qualquer parcela do salário em moeda, acrescido da completa privação de instrução formal (não há indicação de que a reclamante tenha frequentado escola, em qualquer momento de sua vida), além da utilização da mão de obra da autora, desde tenra idade, em serviços reconhecidamente inadequados para menores (realização de trabalho em idade onde a Constituição Federal proíbe que este ocorra) leva à conclusão de que a reclamante esteve submetida a condições degradantes de trabalho, configurando-se, por isso mesmo, a hipótese do trabalho em condições análogas à de escravo. Em sequência, o Tribunal a quo concluiu: " o que se percebe é que as privações a que a reclamante foi submetida, especialmente aquelas relacionadas à educação formal e salário, submeteram-na a uma espécie tão aguda de prejuízo intelectual, que é difícil afirmar se a autora, desligando-se das rés com 36 anos de idade, conseguirá, de alguma forma, adquirir condições de desenvolver qualquer tipo de atividade legal que venha a garantir a ela condições de, com independência, sobreviver na nossa sociedade contemporânea, conseguindo recursos para residir, alimentar-se, vestir-se, medicar-se, etc ". Nesse contexto, destacando que o valor de R$ 150.000,00 arbitrado pela origem não se mostra o mais adequado para a solução do conflito, o TRT decidiu no sentido de que o montante de R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais) é, efetivamente, o valor a ser deferido e que, por conta do quadro narrado, pode servir como paliativo para as privações e sofrimento que marcarão a vida da autora, como sequelas que não se sabe se algum dia serão resolvidas. Ante a gravidade da situação da reclamante descrita pelo Regional e considerando que a condenação em 254 meses de forma escalonada entre as três reclamadas, não houve violação direta e literal do art. 944 do CC. Os arestos de fls. 768-770 são inespecíficos, pois não retratam a mesma situação fática dos autos. Incidência da Súmula 296 I, do TST. Recurso de revista não conhecido.

RECURSO DE REVISTA INTERPOSTO NA VIGÊNCIA DA LEI 13.467/2017 E DA IN 40 DO TST. JULGAMENTO ULTRA PETITA. PRESCRIÇÃO. INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL. VERBAS RESCISÓRIAS. Não se analisam temas do recurso de revista interposto na vigência da IN 40 do TST não admitidos pelo TRT de origem quando a parte deixa de interpor agravo de instrumento.

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Recurso de Revista n° TST-RR-1002309-66.2016.5.02.0088 , em que é Recorrente D.P.M.C.O. e é Recorrido S.R.C.. .

O Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região, por meio do acórdão de fls. 555-572 (numeração de fls. verificada na visualização geral do processo eletrônico – "todos os PDFs" – assim como todas as indicações subsequentes), deu provimento parcial ao recurso ordinário da reclamante e negou provimento ao recurso ordinário apresentado pelas reclamadas.

As reclamadas interpuseram recurso de revista às fls. 731-780, com fulcro no art. 896, alíneas a , e c , da CLT.

O recurso foi admitido somente quanto ao tema "valor arbitrado a título de indenização por dano moral", por meio da decisão de fls. 785-792.

As reclamadas não interpuseram agravo de instrumento.

Contrarrazões foram apresentadas às fls. 801-805.

Os autos não foram enviados ao Ministério Público do Trabalho, por força do artigo 95, § 2º, do Regimento Interno do Tribunal Superior do Trabalho.

É o relatório.

V O T O

O recurso é tempestivo, regularmente representado, e está satisfeito o preparo.

Convém destacar que o presente apelo rege-se pela Lei nº 13.467/2017, tendo em vista haver sido interposto contra decisão publicada em 30/10/2019, fl. 6, após se iniciar a eficácia da aludida norma, em 11/11/2017.

Considerando que a decisão de admissibilidade foi publicada sob a vigência da IN 40/2016 do TST, incumbia ao recorrente interpor agravo de instrumento quanto ao tema cujo seguimento fora denegado pela Corte a quo , qual seja, "julgamento ultra petita", "prescrição", "indenização por dano moral" e verbas rescisórias, mas assim não o fez, incidindo em preclusão no ponto, nos termos do art. 1º, caput, da IN 40/2016 do TST.

O segredo de justiça foi deferido para preservar o nome das pessoas envolvidas, sem embasamento legal específico e sem impedir que os fato já conhecidos se tornassem, desde antes, de domínio público. Com isso, determino o levantamento do segredo de justiça

2.1 – VALOR ARBITRADO A TÍTULO DE DANOS MORAIS

Na decisão proferida em recurso ordinário, ficou consignado:

" 3 - Dano moral

Aqui o apelo argumenta -- através de longa narrativa -- que a reclamante foi colhida em Curitiba, a pedido da família dela, e trazida para São Paulo, em razão das precárias condições em que vivia. Cresceu na casa das reclamadas, como pessoa da família e sempre foi assim tratada, inexistindo tratamento semelhante a escravo. Aduziu o apelo, ainda, que a reclamante sempre dormiu em lugar digno, com banheiro próprio e se passou a cuidar da senhora Dinah após o AVC que esta sofreu, foi por devoção que tinha para com esta, em razão dos estreitos laços que sempre mantiveram. Por conta disso, o recurso se bate contra a indenização de R$ 150.000,00 imposta pela origem -- sob o fundamento que a autora foi privada de educação, por conta do trabalho para as reclamadas -- argumentando, em acréscimo, que as reclamadas tentaram, por várias vezes, alfabetizar a reclamante, mas sempre sem sucesso, vez que a autora não se dispunha a frequentar aulas e colégios, o que acabou levando a reclamada Dinah a alfabetizar a reclamante em casa mesmo.

Por cautela, o apelo se bate contra o valor da indenização, postulando que este seja reduzido para R$ 20.000,00, no máximo.

Eis a sentença, no ponto:

A instrução deixou claro que a tese da reclamada de adoção não pode ser acolhida. A autora não foi retirada de seu âmbito familiar apenas por um ato altruísta das reclamadas, apenas para propiciar um futuro melhor, como tentou fazer crer.

Se a autora tivesse sido adotada, ainda que de maneira tácita, teria tratamento ao menos semelhante ao tratamento das demais filhas, o que não ocorria. A autora pagava por seus utensílios pessoais, participava de seus recolhimentos previdenciários, participava de seu plano de saúde, comprava suas próprias roupas, produtos de beleza e higiene, entre diversos outros gastos arcados por ela própria, como demonstram as anotações de pagamento.

Além disso, a autora se viu privada de estudos, o que fez com que seu desenvolvimento pessoal fosse sobremaneira privado, o que não ocorreu com os demais moradores da residência. A reclamada até pode ter tentado oferecer uma vida melhor que a autora teria. É impossível afirmar com certeza, pois não há evidências do que estava reservado à reclamante com sua família biológica. Entretanto, é certo que o futuro oportunizado não foi àquele oferecido às filhas da dona da casa.

A alegação também de que até os 18 anos apenas fazia tarefas simples domésticas se mostrou falsa. A vizinha da ré conheceu a autora aos 14 ou 15 anos e desde então já era tratada como empregada da casa. É possível concluir que a serventia começou até antes.

A atitude é ainda reforçada se comparada com o outro empregado doméstico da reclamada, que ‘começou a trabalhar com a reclamada quando tinha 13 anos e meio; que fazia a limpeza de casa e coisas assim’ .

Por melhores que possam ter sido as intenções, a ré empregou menor de idade sem oportunizar tempo para estudo e para o desenvolvimento psicológico.

A educação é direito social de nível constitucional (Art. 6º, 205 e 227), e, para tanto, foi vedado trabalho a menores de dezesseis anos (Art. 7º, XXXIII , e 227, §3º, I ). O desrespeito do dever de oferecer ensino fundamental fez com que a reclamante se visse estranha a questões como cidadania, qualificação profissional, desenvolvimento moral, e até mesmo a possibilidade de manter-se de maneira independente em relação à reclamada.

Nem mesmo o direito de voto lhe foi ensinado. É possível perceber nas anotações de dezembro de 2000 que a ré descontou R$3,17 a título de multa por não ter votado (fl. 81).

Até hoje a autora depende de faxinas nas casas dos parentes da reclamada com os quais conviveu durante sua vida, recebendo de maneira aleatória e informal. Desde os 7 anos a reclamante se viu sem convivência além da residência, sem conhecimento dos fatos além dos portões da casa, e sem perspectiva de construir um futuro estranho àquele em que foi emergida após a falsa adoção. Por estes argumentos considero que não houve adoção, mas admissão de menor para trabalho proibido.

Entende este Juízo que os fatos são graves e merecem toda a reprovação, entretanto, através do que se pôde perceber de toda a narrativa e de todo o conjunto probatório, o relacionamento vivido entre as partes não chega a caracterizar trabalho análogo à de escravo. O pagamento de um salário mais plano de saúde e recolhimentos previdenciários (fl. 51) não servem para livrar o ato ilícito culposo praticado pelas rés, pois o dano pior já havia sido praticado e dificilmente poderá ser reparado - impedir o acesso à educação.

Como analisado acima, por mais que a inserção da autora no ambiente de trabalho tenha sido há muito mais de cinco anos, não há falar em prescrição porque o principal dano sofrido pela autora repercute até os dias atuais.

A autora não possui formação suficiente para se inserir no mercado de trabalho, é inclusive analfabeta,

Nâo possui nem mesmo discernimento para galgar novas posições em outros ambientes ainda que como empregada doméstica. Os danos repercutem a cada dia, renovando as lesões, por consequência renovando as pretensões e renovando o marco prescricional.

Sopesando os elementos configuradores do dano, sopesando as provas dos autos e observando especialmente, a natureza do bem jurídico tutelado, a intensidade do sofrimento, a extensão e a duração dos efeitos da ofensa, as condições em que ocorreu a ofensa ou o prejuízo moral, o grau de dolo ou culpa, o esforço efetivo para minimizar a ofensa e a situação social e econômica das partes envolvidas, entendo como razoável a condenação equivalente a R$150.000,00, balizando o valor pelo Art. 944 do CC.

Juros e correção monetária nos termos da Sum 439 do TST. Imposto de renda nos termos da Sum 498 do STJ.

 

Como se vê pela transcrição supra, a análise desenvolvida pela origem está preponderantemente lastreada na prova de audiência. E com base na prova produzida, verdadeiramente, parece-me muito difícil chegar-se à conclusão diversa daquela a que chegou o julgador. Não há como sufragar a tese de adoção (o tratamento diverso, em relação às demais filhas é patente, na medida em que nenhuma das outras trabalhava nos serviços doméstico em favor da reclamante, enquanto esta sempre o fez, em favor da reclamadas) e, menos ainda, ignorar o sofrimento imposto à obreira, privada de educação, direito de voto e, para além, de verdadeira participação na sociedade em que está -- precariamente -- inserida.

Os fatos, concluiu a sentença, são muito graves e não tenho como não concordar com tal afirmação. Por isso mesmo, não tenho, da mesma forma, como concluir que a indenização imposta pela sentença é indevida, ou está arbitrada em valor exagerado.

Fica, ainda uma vez, mantida a sentença, pelos próprios fundamentos que ela apresenta.

 

III - Recurso da Reclamante

 

1 - Condição análoga a de escravo

O apelo insiste em que reclamante se encontrava e situação análoga a do escravo, destacando que nem mesmo salário a reclamante recebia e que a declaração em sentido contrário, feita em audiência, se deve às poucas luzes da autora, que não teria condições de alcançar, com clareza, o conceito de salário. Sendo assim, reclamante postula o reconhecimento do trabalho escravo, com imprescritibilidade dessa condição, anotação da CTPS desde a idade de criança e pagamento de salários, destacando que os anos de trabalho infantil seriam importante para os fins de aposentadoria.

No que toca ao valor do dano moral, postula o aumento do valor para R$ 1.000.000,00, ou, no mínimo, o valor de um salário mínimo até a idade de 79 anos de idade, o que equivaleria a uma indenização de cerca de R$ 450.000,00.

 

1.1 - Trabalho em condição análoga ao do escravo

O debate sobre o que vem a ser a condição análoga à do escravo tem sido intenso e, recentemente, por conta da publicação da Portaria -- do extinto Ministério do Trabalho -- 1.129 de outubro de 2017 (que dispõe sobre os conceitos de trabalho forçado, jornada exaustiva e condições análogas à de escravo para fins de concessão de seguro-desemprego ao trabalhador que vier a ser resgatado em fiscalização do Ministério do Trabalho, nos termos do art. 2º-C da Lei 7.998/1990, bem como altera dispositivos da Portaria Interministerial MTPS/MMIRDH nº 4, de 11 de maio de 2016, a qual dispõe sobre as regras relativas ao Cadastro de Empregadores que tenham submetido trabalhadores a condições análogas à de escravo), e posterior suspensão desta por decisão liminar da Ministra Rosa Weber na ADPF 489, perante o STF, recrudesceu.

No inóspito terreno da concretização desse conceito, onde há a presença de poderosos interesses entrelaçados em tristes verdades históricas, emerge o artigo 149 do Código Penal como farol no mar das dificuldades que rodeiam o intérprete. E nele está previsto:

Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto.

A prova produzida nestes autos impressiona em dois aspectos: a) há incontrovérsia em relação aos fatos de que a reclamante foi trazida para a casa das reclamadas com 7 anos de idade (em 1987, aproximadamente) e lá ficou até 2016, quando, segundo depoimento da reclamante, em audiência, desentendeu-se com uma pessoa da família e deixou o trabalho; b) nesses quase trinta anos de convivência, reclamante permaneceu sem frequentar escolas, sem receber -- ao menos em certa parte desse período -- dinheiro pelos serviços que realizava, e trabalhando desde muito jovem em serviços domésticos que favoreciam as rés.

A defesa apresenta o quadro de que a reclamante foi adotada como filha pela ré Dinah, mas essa versão não se confirma na prova encartada nos autos.

A primeira testemunha convidada pela autora, que foi vizinha das rés, frequentando a casa da empregadora, declarou que, na época em que tinha contato com a primeira reclamada, conheceu a autora como empregada da casa, encarregada de atender a porta e servir café às visitas. Acrescentou que, naquela época (iniciou dos anos 90, segundo a depoente), a demandante deveria contar com 14/15 anos (com a autora nasceu em 1980, se se considerar como início da década o período de 1994/95, a conta da testemunha está aproximadamente correta; se se considerar que o início da década equivale aos dois primeiros anos, a reclamante contava com 11/12 anos, ou seja, ainda menos do que o indicado pela testemunha). A própria testemunha apresentada pelos réus informou que começou a trabalhar para eles, em serviços domésticos, quando contava com treze anos e meio, deixando patente que a prática dos reclamados era mesmo a utilização da mão de obra infantil. Não custa relembrar, nesta altura, que o decreto 6.481/2008 -- que regulou os artigos 3o e 4o da Convenção 182 da OIT -- proíbe o trabalho doméstico para menores.

Para além disso, a documentação que a reclamante apresentou também diz muito do que acontecia entre as partes. Trata-se de uma caderneta, onde a primeira reclamada anotava o pagamento (incontroverso que a reclamante só passou a ter salário quando completou 18 anos, mesma data em que teve anotada a CTPS) do que seria o salário da reclamante, com os descontos que realizava em tais montantes. Observe-se que os descontos envolvem não apenas roupas, mas também remédios, plano de saúde, valor da previdência e, além disso, coisas curiosas como cabides, rádios, panelas e até fogões. Mas o que é mais significativo nesse procedimento é perceber que a autora, em verdade, não recebia dinheiro da empregadora, o que, certamente, se explica pela percepção de que, estando com as rés desde os sete anos, sempre teve dependência econômica em relação às demandadas, desde criança. Veja-se, por exemplo, que à fl. 89, há a indicação de que a autora receberia R$ 200,00 como salário em agosto de 2001 (a reclamante com 21 anos), sendo que a primeira reclamada descontou o valor de R$ 32,71 de gastos Carrefour, R$ 68,00 de convênio, R$ 36,00 de contribuição do INSS (na época, o pagamento até R$ 398,48 sujeitava as partes ao recolhimento de 7,65% para o empregado doméstico e 12% para o empregador, num total de 19,65%, que em relação a um salário de FR$ 200,00, redundariam recolhimento de R$ 39,30, levando-nos a concluir que a reclamada descontava da autora tanto o percentual relacionado ao pagamento da parcela do empregado como do empregador), além de 4 pilhas, no importe de R$ 2,40. Nesse mês, tirante todos os descontos, a reclamante deveria receber, portanto, R$ 60,89 em dinheiro. Como se vê pelo documento de fl. 90, entrementes, isso não ocorreu. A conta de setembro inicia com a soma do valor do salário daquele mês (R$ 200,00) mais o acréscimo de R$ 60,89 de ‘resto’ do mês passado. Ou seja, não houve pagamento algum. O crédito simplesmente foi lançado como tal, no mês seguinte. E, mais uma vez, após vários descontos, a reclamante teria, nesse mês de setembro, direito a receber o ‘resto’ de R$ 45,56. Todavia, consoante o documento de fl. 91 registra, no mês de outubro o resto de R$ 45,56 é acrescido ao salário para novos e contínuos descontos, até que se chega ao resultado final do mês, onde surge um ‘resto’ de R$ 10,29, que é, ainda uma vez, acrescido ao salário de novembro (v. fl. 92) e assim por diante. Como se vê, restou demonstrado que entre agosto de 2001 a outubro desse mesmo ano, a reclamante não recebeu nenhum valor em dinheiro, trabalhando para pagar a contribuição do INSS da empregadora e algumas outras necessidades básicas, numa espécie de truck system domiciliar, engendrado pelas reclamad a s.

A ausência do pagamento de qualquer parcela do salário em moeda, acrescido da completa privação de instrução formal (não há indicação de que a reclamante tenha frequentado nenhuma escola, em qualquer momento da vida dela), além da utilização da mão de obra da autora, desde tenras idades, em serviços reconhecidamente inadequados para menores (e realização de trabalho em idade onde a Constituição Federal proíbe que este ocorra) leva à conclusão de que a reclamante esteve submetida a condições degradantes de trabalho , configurando-se, por isso mesmo, a hipótese do trabalho em condições análogas à do escravo. A soma das condutas adotas pelas demandadas redunda num obstáculo severo à liberdade da autora, na medida em que, privada não apenas de condições econômicas mínimas, mas também de informações e conhecimento que pudessem permitir a ela um grau ínfimo de autonomia na sociedade contemporânea, restou, a autora, limitada a manter-se servindo aos empregadores, como única forma conhecida por ela para assegurar a própria sobrevivência.

Destarte, reformo a valorosa decisão da origem, neste tópico, de sorte a reconhecer e declarar que, efetivamente, a autora esteve submetida a trabalho em condições análogas à do escravo.

 

1.2 - Prescrição

(...)

 

1.3 - Consequências

Como consequência do que se disse nos itens acima, temos:

1.3.1 -- Dou provimento ao pedido relacionado à alteração da data de início do contrato de trabalho da autora, conforme anotação da CTPS. Tendo em conta o depoimento da primeira testemunha ouvida em audiência, arbitro que, no mínimo, a reclamante já trabalhava para os réus desde 01.01.1992, determinando que a secretaria da Vara retifique a data de admissão da reclamante, para fazer constar essa realidade.

1.3.2 -- Face à constatação de que a autora, como regra, não recebia nenhuma parcela do salário em dinheiro, bem como sendo certo que as rés não apresentaram nenhum recibo de pagamento, dou provimento ao recurso também para condenar, nos termos do artigo 83, parágrafo único, da CLT, as rés ao pagamento de 30% do salário mínimo em favor da obreira, desde a data da admissão aqui reconhecida, até a data do desligamento.

1.3.3 -- O afastamento da prescrição atinge, obviamente, todos os direitos deferidos pela origem, que passam -- salvo quando fixados em datas específicas -- a serem devidos desde o início do trabalho, até o desligamento.

 

1.4 - Indenização pelo dano moral

O valor de R$ 150.000,00 arbitrado pela origem me parece, com todo o respeito, bastante acanhado para o quadro que a própria sentença teve o cuidado de descrever com tintas bastante realistas.

Em verdade, o que se percebe é que as privações a que a reclamante foi submetida, especialmente aquelas relacionadas à educação formal e salário, submeteram-na a uma espécie tão aguda de prejuízo intelectual, que é difícil afirmar se a autora, desligando-se das rés com 36 anos de idade, conseguirá, de alguma forma, adquirir condições de desenvolver qualquer tipo de atividade legal que venha a garantir a ela condições de, com independência, sobreviver na nossa sociedade contemporânea, conseguindo recursos para residir, alimentar-se, vestir-se, medicar-se, etc.

Uma compensação que estivesse à altura do sofrimento que a condição atual da obreira representa deveria considerar, certamente, alguma forma de diminuição desse estado de necessidade que transcende, no meu sentir, o campo financeiro/econômico e lança raízes em questões afetivas, psicológicas e sabe-se lá de que outras ordens.

Os empregadores e a casa deles foi todo o universo que a reclamante teve consigo, por quase trinta anos de vida. Eram os pais, a família, os amigos e os senhores da demandante, tudo ao mesmo tempo. Infelizmente, no quesito trabalhista, a relação nunca transcendeu a fronteira da severa ilegalidade, aproximando-se, como dito acima, da utilização mais cruel da mão de obra, onde a obreira esteve à mercê da direção do empregador não apenas no mister que desenvolvia, mas na própria e precária vida que conseguiu viver.

Sendo assim, entendo, com todo respeito ao elogiável trabalho da origem, que a indenização postulada pela obreira, de R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais) é, efetivamente, o valor que deve ser deferido e que, por conta do quadro já aqui narrado, pode servir como paliativo para as privações e sofrimento que marcarão a vida da autora, como sequelas que não se sabe se algum dia se resolverão.

Entrementes, não se pode perder de vista que os réus são pessoas naturais e que a quantia indicada no parágrafo anterior representa valor considerável para os dias atuais, ainda que a lesão imposta à reclamante indique tal montante como o mais adequado para a solução do conflito. Da mesma forma, a melhor solução para o caso dos autos é, sem dúvida alguma, aquela que dê à reclamante condições de suportar a separação com as reclamadas, com alguma autonomia e não a que leve as rés à ruína, na medida em que, caso isso venha a acontecer, a reclamante também se verá prejudicada, sem conseguir compensação nem de parte da lesão que sofreu, nos anos precedentes.

Tendo à vista tais considerações, a conclusão a que chego é que:

I) a sentença fica reformada para ampliar-se a condenação relacionada com a indenização pelos danos morais, fixando o valor desta última em R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais), valor que, entretanto, será pago em 254 meses (pouco mais de 21 anos), nos seguintes termos:

a) os 60 primeiros meses de R$ 3.000,00;

b) os 60 meses seguintes, no importe de R$ 3.500,00;

c) os 60 meses seguintes, no valor de R$ 4.000,00;

d) e os últimos 74 meses, no montante de R$ 5.000,00 por mês.

II) O valor supra está atualizado até a data da publicação desta decisão, sendo que as quantias indicadas acima sofrerão reajustes anuais, com base nos mesmos índices que o tribunal publicar para a correção dos créditos trabalhistas. Não haverá, entretanto, acréscimo de juros, vez que estes já estão considerados nos cálculos e ponderações que alicerçaram a arbitragem do valor final da indenização;

III) O valor supra não se compensa com nenhuma parcela do restante da condenação, nem com valores que a reclamante porventura venha a receber da previdência, ou de qualquer outro empregador, ou fonte pagadora.

Reforma-se, parcialmente." (fls. 558-569 – destaques no original).

À análise.

A decisão regional foi publicada após iniciar a eficácia da Lei 13.467/2017, em 11/11/2017, que alterou o art. 896-A da CLT, passando a dispor:

"Art.896-A - O Tribunal Superior do Trabalho, no recurso de revista, examinará previamente se a causa oferece transcendência com relação aos reflexos gerais de natureza econômica, política, social ou jurídica.

§ 1º São indicadores de transcendência, entre outros:

I - econômica, o elevado valor da causa;

II - política, o desrespeito da instância recorrida à jurisprudência sumulada do Tribunal Superior do Trabalho ou do Supremo Tribunal Federal;

III - social, a postulação, por reclamante-recorrente, de direito social constitucionalmente assegurado;

IV - jurídica, a existência de questão nova em torno da interpretação da legislação trabalhista.

§ 2º Poderá o relator, monocraticamente, denegar seguimento ao recurso de revista que não demonstrar transcendência, cabendo agravo desta decisão para o colegiado.

§ 3º Em relação ao recurso que o relator considerou não ter transcendência, o recorrente poderá realizar sustentação oral sobre a questão da transcendência, durante cinco minutos em sessão.

§ 4º Mantido o voto do relator quanto à não transcendência do recurso, será lavrado acórdão com fundamentação sucinta, que constituirá decisão irrecorrível no âmbito do tribunal.

§ 5º É irrecorrível a decisão monocrática do relator que, em agravo de instrumento em recurso de revista, considerar ausente a transcendência da matéria.

§ 6º O juízo de admissibilidade do recurso de revista exercido pela Presidência dos Tribunais Regionais do Trabalho limita-se à análise dos pressupostos intrínsecos e extrínsecos do apelo, não abrangendo o critério da transcendência das questões nele veiculadas."

Insta frisar que o Tribunal Superior do Trabalho editou novo Regimento Interno – RITST, em 20/11/2017, adequando-o às alterações jurídico-processuais dos últimos anos, estabelecendo em relação ao critério da transcendência, além dos parâmetros já fixados em lei, o marco temporal para observância dos comandos inseridos pela Lei 13.467/2017:

"Art. 246. As normas relativas ao exame da transcendência dos recursos de revista, previstas no art. 896-A da CLT, somente incidirão naqueles interpostos contra decisões proferidas pelos Tribunais Regionais do Trabalho publicadas a partir de 11/11/2017, data da vigência da Lei n.º 13.467/2017."

Evidente, portanto, a subsunção do presente recurso de revista respectivo aos termos da referida lei.

É de se considerar que, em razões de revista, as reclamadas requerem que seja arbitrado valor mais condizente com o presente caso, uma vez que os valores fixados foram excessivos, ou seja, a quantia no montante de R$1.000.000,00 (um milhão de reais) não está condizente com a realidade e parâmetros dos Tribunais, assim como contraria os princípios da razoabilidade e proporcionalidade. Indica violação do art. 944 do Código Civil e traz arestos a cotejo.

No caso em tela, a pretensão recursal vem alicerçada na tese de desproporcionalidade do valor da indenização por dano moral arbitrado pela Corte a quo no valor de R$ 1.000.000,00.

Nesse contexto, o fato de o valor da condenação alcançar patamar elevado, sobretudo na perspectiva de pessoas físicas, mostra-se apto a configurar o requisito da transcendência econômica, nos termos do art. 896-A, § 1º, I, da CLT.

Passo à análise dos demais requisitos de admissibilidade do recurso.

Ao exame.

A Corte Regional, soberana na análise da prova, consignou os seguintes dados fáticos: a) a autora não foi retirada de seu âmbito familiar apenas por um ato altruísta das reclamadas, apenas para propiciar um futuro melhor, como tentaram fazer crer as rés; b) se a autora tivesse sido adotada, ainda que de maneira tácita, teria tratamento ao menos semelhante ao tratamento das demais filhas, o que não ocorria; c) a reclamante pagava por seus utensílios pessoais, participava de seus recolhimentos previdenciários, participava de seu plano de saúde, comprava suas próprias roupas, produtos de beleza e higiene, entre diversos outros gastos arcados por ela própria, como demonstram as anotações de pagamento; d) a reclamante se viu privada de estudos, o que fez com que seu desenvolvimento pessoal fosse sobremaneira privado; e) a vizinha da ré conheceu a autora aos 14 ou 15 anos e desde então já era tratada como empregada da casa, sendo possível concluir que a serventia começou até antes; f) a ré empregou menor de idade sem oportunizar tempo para estudo e para o desenvolvimento psicológico; g) hoje a autora depende de faxinas nas casas dos parentes da reclamada com os quais conviveu durante sua vida, recebendo de maneira aleatória e informal; h) desde os 7 anos de idade a reclamante se viu sem convivência além da residência, sem conhecimento dos fatos além dos portões da casa, e sem perspectiva de construir um futuro estranho àquele em que foi emergida após a falsa adoção; i) o pagamento de um salário mais plano de saúde e recolhimentos previdenciários não servem para livrar o ato ilícito culposo praticado pelas rés, pois o dano pior já havia sido praticado e dificilmente poderá ser reparado - impedir o acesso à educação; j) a demandante foi privada de educação, direito de voto e, para além, de verdadeira participação na sociedade em que está precariamente inserida; k) não há controvérsia em relação aos fatos de que a reclamante foi trazida para a casa das reclamadas com 7 anos de idade (em 1987, aproximadamente) e lá ficou até 2016, quando, segundo depoimento da reclamante, em audiência, desentendeu-se com uma pessoa da família e deixou o trabalho; l) nos quase trinta anos de convivência, a reclamante permaneceu sem frequentar escolas, sem receber, ao menos em certa parte desse período, dinheiro pelos serviços que realizava, e trabalhando desde muito jovem em serviços domésticos que favoreciam as rés; m) a prova dos autos deixou patente que a prática das reclamadas era mesmo a utilização da mão de obra infantil; n) incontroverso que dos 7 aos 18 anos de idade a autora não recebeu qualquer salário; a CTPS foi anotada em 1998, quando a autora completou 18 anos e a prova documental dos autos demonstrou que de agosto de 2001 a outubro desse mesmo ano, a reclamante não recebeu nenhum valor em dinheiro, trabalhando para pagar a contribuição do INSS da empregadora e algumas outras necessidades básicas, numa espécie de truck system domiciliar, engendrado pelas reclamadas; o) a ausência do pagamento de qualquer parcela do salário em moeda, acrescido da completa privação de instrução formal (não há indicação de que a reclamante tenha frequentado escola, em qualquer momento de sua vida), além da utilização da mão de obra da autora, desde tenra idade, em serviços reconhecidamente inadequados para menores (realização de trabalho em idade onde a Constituição Federal proíbe que este ocorra) leva à conclusão de que a reclamante esteve submetida a condições degradantes de trabalho, configurando-se, por isso mesmo, a hipótese do trabalho em condições análogas à de escravo.

Em sequência, o Tribunal a quo concluiu: " o que se percebe é que as privações a que a reclamante foi submetida, especialmente aquelas relacionadas à educação formal e salário, submeteram-na a uma espécie tão aguda de prejuízo intelectual, que é difícil afirmar se a autora, desligando-se das rés com 36 anos de idade, conseguirá, de alguma forma, adquirir condições de desenvolver qualquer tipo de atividade legal que venha a garantir a ela condições de, com independência, sobreviver na nossa sociedade contemporânea, conseguindo recursos para residir, alimentar-se, vestir-se, medicar-se, etc ".

Nesse contexto, destacando que o valor de R$ 150.000,00 arbitrado pela origem não se mostrava o mais adequado para a solução do conflito, o TRT decidiu no sentido de que o montante de R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais) é, efetivamente, o valor que deve ser deferido e que, por conta do quadro narrado, pode servir como paliativo para as privações e sofrimento que marcarão a vida da autora, como sequelas que não se sabe se algum dia resolver-se-ão.

A recorrente defende que o valor é desarrazoado e desproporcional. Todavia, essa assertiva desafia o exame dos fatos à luz dos dados registrados pelo Tribunal Regional, listados acima.

Com efeito, reitero constar, em síntese, que as reclamadas mantiveram uma criança em trabalho doméstico, privando-a de qualquer pagamento de salários dos 7 aos 18 anos de idade, privando-a de qualquer instrução acadêmica ou possibilidade de desenvolvimento psicossocial proporcionado pela frequência à escola, repita-se: a autoria nunca frequentou escola, cursos ou outra atividade similares. Sua vida dos 7 aos 36 aos de idade circunscreveu-se à casa e às atividades domésticas da família das demandadas. Consta, ainda, que após a anotação da CTPS da autora, ocorrida quando ela completou 18 anos em 1998, há prova documental de que no ano de 2001, por exemplo, de agosto a outubro, nenhuma paga em espécie, a título de salário, foi feita à autora.

Portanto, o valor da indenização deve atender aos danos que essas circunstâncias geraram e vão continuar a repercutir na vida da autora.

Desse modo, não há como entender violado o dispositivo apontado pelas recorrentes, ante a condenação no valor de R$1.000.000,00. Não há desproporção ou ausência de razoabilidade, porquanto como bem lembrou a Ministra Kátia Magalhães Arruda em voto proferido nesta assentada, o valor seria o equivalente à soma matemática da falta de paga de salários à autora por 11 anos (dos 7 aos 18 anos de idade), bem como da ausência de quitação regular de salários após a anotação da CTPS quando a autora completou 18 anos de idade, tudo com os juros aplicáveis aos créditos trabalhistas nos 29 anos que a relação perdurou.

No particular, deve ser levado em conta o salário médio de uma trabalhadora doméstica, em parte cumulado com labor como cuidadora de idosos, para além de 8 horas diárias, em São Paulo capital. E, ainda, a submissão a condições degradantes por 29 anos (de 1987 a 2016), além das repercussões de ordem econômica que o impedimento à evolução social e psicológica, ausência do carinho e amparo familiar já causaram e continuarão a causar à autora.

Não há desproporção ou falta de razoabilidade.

Ainda nas palavras da Ministra Kátia Arruda:

"Se fizermos toda essa análise na perspectiva de que o que se está concedendo não é uma indenização do valor todo, mas um valor que corresponderia ao pagamento do salário se ela tivesse recebido durante todo esse período dentro das condições normais, então o valor é proporcional e, com certeza, o dano não é proporcional, não é razoável e não há como ser efetivamente custeado, porque é um dano que atinge toda a vida dessa pessoa e atinge também a sociedade à medida que a própria sociedade se sente agredida por uma situação que envolva trabalho degradante ou envolva trabalho infantil."

Por fim, vale registrar o que constou do voto do Ministro Lélio Bentes Corrêa, igualmente proferido em sessão por ocasião do julgamento do recurso de revista em exame. As reclamadas, em 1987, infringiram a Convenção nº 29 da Organização Internacional do Trabalho que é da década de 30, firmada em Genebra no dia 28/6/1930, tendo sido ratificada pelo Brasil na década de 50, em 26/6/1956 (Decreto nº 40646 de 16/6/1956).

E em 1988 a Constituição Federal Brasileira, denominada cidadã, foi promulgada, trazendo em seu art. art. 7º, inciso XXXIII, a proibição de qualquer trabalho a menores de 14 anos. Naquela data, a autora contava com 8 anos de idade e já estava trabalhando há cerca de um ano, como doméstica, na residência das reclamadas.

Como bem lembrou o Ministro Lélio:

"No tocante à proporcionalidade da indenização, a Ministra Kátia exauriu a questão – eu fazia, Ministra Kátia, as mesmas contas que V. Ex.ª fez: foram vinte e seis anos com remuneração reduzida, por assim dizer, dos quais onze, certamente, sem remuneração nenhuma. A indenização proposta, parcelada em duzentos e cinquenta meses, praticamente repõe essas obrigações de retribuição pecuniária que não foram cumpridas na época própria. Agora, também concorro com o pensamento de V. Ex.ª no sentido de que: um milhão de reais compensa ou indeniza o dano sofrido? Dificilmente. Repõe o trauma experimentado de se ver, nessas situações gravíssimas, a partir dos sete anos de idade, isolado da família, numa família estranha e sendo tratada sem respeito à sua dignidade? Não repõe. Repõe a oportunidade perdida de receber educação, de ter acesso à cidadania? Definitivamente não repõe. E, sobretudo, não repõe o sagrado direito de sonhar, que deve ser assegurado a todas e a todos. E se alguém, a essa altura, pensa que é piegas essa ponderação, peço que se lembrem dos próprios filhos e filhas, porque os nossos filhos têm direito de sonhar. Nós tivemos direito de sonhar, nós fomos à escola, fomos tratados com amor e carinho. O que se espera e o que se impõe como dever ético de uma sociedade que se pretende minimamente civilizada e desenvolvida é que esse direito a um tratamento digno e afetuoso se estenda a todas as crianças do nosso País."

Ante a gravidade da situação da reclamante descrita pelo Regional e considerando que a condenação em 254 meses, de forma escalonada, entre as três reclamadas, não houve violação direta e literal do art. 944 do Código Civil.

Os arestos de fls. 768-770 são inespecíficos, pois não retratam a mesma situação fática dos autos. Incidência da Súmula 296, I, do TST.

Ante o exposto, reconheço a transcendência econômica e não conheço do recurso de revista das reclamadas.

ISTO POSTO

ACORDAM os Ministros da Sexta Turma do Tribunal Superior do Trabalho, por unanimidade: I) determinar o levantamento do segredo de justiça; II) reconhecer a transcendência econômica da causa; III) não conhecer do recurso de revista das reclamadas; IV) determinar a remessa de ofício ao Ministério Público Federal, com cópia da presente decisão, nos termos dos artigos 40 do CPC e 149 do CP.

Brasília, 25 de maio de 2022.

Firmado por assinatura digital (MP 2.200-2/2001)

AUGUSTO CÉSAR LEITE DE CARVALHO

Ministro Relator